O TEMPO E A CENA DE ANDRÉ NOVAIS OLIVEIRA E BÁRBARA COLEN

 

O ano é 2010. Duas imagens de uma paisagem em comum: a primeira, uma rua de subúrbio com posto de gasolina na esquina, a segunda, uma vendedora de sorriso malicioso que provoca seu amante no trabalho enquanto toca ao fundo “More than a Woman”, dos Bee Gees. A primeira imagem é o plano único do filme Fantasmas, de André Novais Oliveira, a segunda é uma cena com a atriz Bárbara Colen em Contagem, de Gabriel Martins e Maurílio Martins. Quase uma década e meia depois, o plano único do posto de Fantasmas, de André Novais Oliveira se consolidou como criações mais radicais do cinema brasileiro e seu criador André Novais Oliveira um dos cineastas mais influentes com seus curtas e longas como Ela Volta na quinta (2015), Temporada (2018) e O dia em que te conheci (2023). Bárbara Colen atuou nos filmes de Gabriel Martins, Maurílio Martins, Ewerton Belico, Samuel Marotta, passando pelo cinema de Kléber Mendonça Filho, Eryk Rocha, Flávia Neves e séries de televisão com destaque para Hit Parade (2021), de Marcelo Caetano, construindo uma reputação rara nos dias de hoje: é uma grande atriz de cinema que ajuda a definir a imagem de uma época.

É possível destacar duas cenas de Bárbara Colen que talvez definam a particularidade do seu trabalho e da sua presença: a primeira é essa já citada cena de Contagem em que sua performance faz uma variação sutil entre o jogo cênico que instaura com seu amante enquanto trabalho e a indisposição debochada de levar esse jogo até o fim. Há duas ou três (ou mais) camadas da personagem em uma cena tão breve. Outra cena é a da conversa com o personagem de Renan Rovida em Baixo Centro. É uma cena longa que também termina como um jogo frustrado. Renan tenta jogar, Bárbara esconde o jogo. Existe aí uma sutileza minimalista, um tempo, que é único e Bárbara é craque nesse jogo. É esse tempo da atriz – e esse tempo da cena com Renan – que talvez defina de modo expressivo a força da mise en scène do cinema contemporâneo de Belo Horizonte. Os filmes dos cineastas de BH são distintos em estilo e sentimento, porém a cena é sempre um jogo jogado com o tempo e a linguagem. O que não se diz é tanto do jogo quanto o que se diz. É só olhar para Bárbara Colen em cena.

O “jogo jogado” do tempo e da linguagem na cena é um traço robusto, ainda que parece tímido, do cinema de André Novais. O que não se diz é tão importante quanto o que se diz, e o que se diz guarda o segredo daquilo se sente. A conversa dos personagens se alia a um tempo vivido, um tempo forte que se impõe por sua duração discreta, um tempo cotidiano frugal mas que a cada gesto de montagem parece ocultar um segredo. O tempo de Contagem é espacializado: cada cena de rua, cada diálogo, cada cena doméstica guarda em si muitas temporalidades. Não há uma rigidez cênica, pois André se concentra nos atores e atrizes, seus parceiros e parceiras de criação. Dona Zezé, Grace Passô, Renato Novais, Norberto Novais Oliveira são tão autores quanto André, pois o diretor não subestima a imaginação de seus parceiros e parceiras.

Tanto André Novais como Bárbara Colen são parte ativa de uma renovação no cinema brasileiro. O tempo e a prosódia dos filmes que realizaram em Minas Gerais – com destaque para os trabalhos da Filme de Plástico e do vencedor do Aurora em 2018, Baixo Centro, de Ewerton Belico e Samuel Marotta – superaram o estilo esgotado do realismo padrão do cinema brasileiro de momentos anteriores. O temperamento e o ritmo da fala em filmes como Contagem e No Coração do Mundo, de Gabriel e Maurílio Martins, em que Bárbara atua, e o tempo e a discrição quase maliciosa e especulativa de Fantasmas, Temporada e O dia em que te conheci, ajudaram a criar uma poética no cinema brasileiro na qual a temporalidade digressiva e dinâmica da fala e do gesto se impõe cenicamente com um temperamento sem paralelos no cinema de qualquer época. Há algo do cinema moderno, há algo do cinema de Prates Correa, mas os experimentos são novos. Pode se falar isso, de André Novais e dos outros cineastas da Filmes de Plástico e do cinema mineiro contemporâneo, mas também do timing de atores e atrizes que, nas suas diferenças relevantes, ajudam a compor esses filmes como, entre outros e outras, Dona Zezé, Carlos Francisco, Renato Novais, Rejane Faria, Leo Pyrata, Aristides de Sousa e, em especial, Bárbara Colen.

Da videoarte dos anos 1990 aos coletivos e produtoras dos últimos anos, do sertão mineiro à grande Belo Horizonte, o cinema de Minas Gerais nas últimas duas décadas foi parte incontornável de uma renovação decisiva no audiovisual brasileiro em termos de assunto e estilo, de modulação do tempo e da linguagem falada. Nossos homenageados Bárbara Colen e André Novais Oliveira são alguns dos artistas responsáveis por essa discreta radicalidade poética, tanto que suas presenças e influências estão para além do cinema do estado e possuem reconhecimento internacional.  Não que o reconhecimento internacional seja a melhor instância de legitimação, mas é importante notar que esse celeiro criativo que nos deu cineastas, atrizes, atores e técnicos de fino talento rodou e ainda roda o mundo, mas não tem uma política pública a altura dos seus talentos, de seus desafios e de suas demandas. O cinema de Bárbara Colen e André Novais de Oliveira nos aponta o que de melhor temos da cultura brasileira contemporânea. E o que vemos nas suas obras é deslumbrante.

Francis Vogner dos Reis
Coordenador curatorial