NOVOS ARES DE UM BRASIL PLURAL
Nos últimos anos, online em tempos pandêmicos ou presencialmente, quando nos foi possível, a Praça se firmou como lugar de resistência e cumplicidade para quem seguia acreditando na vida e nos encontros possíveis do(s) cinema(s) com seu público. Sem se afastar da possibilidade de comunhão popular que sempre marcou esse espaço em Tiradentes, a seleção desta 27ª Mostra aponta caminhos condizentes com os novos ares da cultura brasileira que, tanto nas políticas públicas quanto nas discussões dentro e fora das redes, tenta acolher as múltiplas modulações de um país plural. A energia desses encontros segue alimentada pelas exibições ao ar livre, acompanhadas das sempre estimulantes conversas sobre os filmes.
Abrindo as exibições na Praça, no sábado, temos uma sessão dupla da Mostra Homenagem, com dois filmes do diretor André Novais Oliveira: o curta Fantasmas (MG), de 2011, e o longa O Dia que te Conheci (MG), lançado em 2023. Os dois filmes demonstram a coerência de uma trajetória, de uma grafia cinematográfica que se dedica à potência do mínimo, numa temporalidade própria e num olhar minucioso, generoso e bem-humorado para os detalhes reveladores da experiência humana.
A celebrada cinebiografia Mussum, o Filmis (RJ), dirigida por Sílvio Guidane, vai ocupar a tela da Praça no domingo com um olhar afetuoso para a complexa trajetória do sambista e ator Antônio Carlos Bernardes Gomes, que ficou nacionalmente conhecido pelo seu personagem, o Mussum. Com Ailton Graça, Yuri Marçal, Gero Camilo e Cacau Protásio no elenco, o filme nutre uma experiência afetiva de ver um cinema-televisão que conecta diferentes gerações por meio da memória coletiva de décadas de hegemonia da telinha nos lares brasileiros. Os caminhos que flertam com a tragédia para um homem negro que se aventurou nas artes dos anos 1960 ao início dos 1990 são coloridos com o humor que definiu o sucesso de sua trajetória.
O ano de 2023 foi da Copa do Mundo de Futebol Feminino mais bem-sucedida da história, com recordes de público e de audiência. Com direção de Adriana Yañez, documentário As Primeiras (SP/RJ) integra a Mostra Praça na segunda-feira, apontando para um recomeço nada glamuroso desse esporte no país, após décadas de proibição, promovendo um (re)encontro entre as pioneiras da Seleção Brasileira de 1988. Com certa franqueza, o filme acompanha a trajetória individual e nos traz a situação presente das jogadoras que foram fundamentais naquela primeira geração que enfrentou falta de recursos e discriminações para que a profissionalização da modalidade no Brasil pudesse ser uma realidade em ascensão.
A Festa de Léo (RJ) tem direção de Luciana Bezerra e Gustavo Melo e atualiza o olhar para favelas do Rio de Janeiro em filmes direcionados ao grande público, numa construção que abraça os conflitos cotidianos, os afetos e a celebração da vida. Essa crônica urbana tem o Vidigal como cenário, entrelaçando família, vizinhança e vivências do morro no dia de aniversário do pequeno Léo. No elenco e na produção, o grupo Nós do Morro faz um importante gesto de distanciamento dos estereótipos de violência que marcaram parte da sua trajetória no cinema brasileiro pós-Retomada.
Mais um dia Zona Norte, de Allan Ribeiro, vencedor de sete candangos no último festival de Brasília, incluindo o de melhor filme, é também uma crônica suburbana carioca. Filme coral, entrelaça histórias de trabalhadores, suas brechas de prazer e sonho no cotidiano. Ribeiro, que já é velho conhecido da Mostra de Tiradentes porque, inclusive, já venceu a Mostra Aurora com Mais do que eu possa me reconhecer (18ª edição, em 2015), depura aqui um estilo discreto, quase minimalista, que faz parecer fácil, que se enuncia sutilmente, mas com uma força poética única do cinema brasileiro contemporâneo. É um trabalho radicalmente voltado aos personagens e a uma construção que muitas vezes parece não ser ficcional. Como Eduardo Coutinho, Allan Ribeiro, entende que a capacidade de fabulação dos atores e atrizes é a imaginação necessário pra fazer do pouco, um mundo.
A paisagem de Tiradentes é um dos cenários da comédia Saideira, dirigida por Julio Taubkin e Pedro Arantes (SP). Duas irmãs se reencontram para uma jornada afetiva, de desencontros e reconciliação, na busca por uma herança perdida: a lendária cachaça que dá nome ao filme. Com traços de road movie e musical, o filme percorre a Estrada Real, as tradições de produção e as anedotas de consumo de cachaça pelo interior de Minas Gerais e Rio de Janeiro, trazendo no elenco Thati Lopes, Luciana Paes, Suely Franco e participações especiais de Jackson Antunes e Tonico Pereira.
Francis Vogner dos Reis
Juliano GomesTatiana Carvalho Costa
Curadores