A ESTRADA SEM FIM QUE NOS TRAZ ATÉ AQUI

Em um contexto de novas e velhas ameaças ao livre pensamento no cinema brasileiro, nos parece importante inaugurar a sessão Clássicos de Tiradentes para reafirmar nossos valores e nossa história e que ambos não começam na própria Mostra. A identidade que a Mostra criou – em especial nos últimos 17, 18 anos – é uma marca de defesa do cinema brasileiro de invenção, não só estética, mas como modelos de produção. O cinema não tem uma só forma de organização. Tem tantas quanto pudermos imaginar. E esse espaço se tornou um espaço de preservação da liberdade de formas e pensamento do cinema brasileiro apostando na continuidade da linha de invenção brasileira que até hoje tem extrema dificuldade de encontrar um espaço que tenha interesse em cuidar dela. Portanto, esse gesto é uma reafirmação desse compromisso a partir também da evidência de seus resultados. Pois é impossível contar a história do cinema brasileiro do século XXI do ponto de vista de sua criatividade sem falar do que foi gestado aqui em Tiradentes.

Além disso, uma das maiores ameaças políticas do nosso tempo é o negacionismo e seu presentismo inerente. Negar as evidências do processo histórico e achar que todos os processos culturais começaram ontem é uma característica daqueles que querem sufocar o cinema brasileiro e sua diversidade de pensamento. Portanto, cabe a nós afirmar e explicitar as linhas da história que compõem esses processos, com responsabilidade e compromisso ético com uma construção que é coletiva, entre filmes, instituições, artistas e demais instâncias.

Esses autores que nasceram em Tiradentes não têm nada garantido, não são privilegiados com uma carreira garantida, a maioria tem dificuldade em dar continuidade às suas obras. É muito curioso que aqueles que viram jocosamente a  “tiradentização do cinema brasileiro” apontaram hegemonia onde havia exceção. O que esses cineastas têm são os trabalhos que fizeram e fazem, que são relativamente pouco conhecidos e que, no fim das contas, dão de fato alguma dignidade ao termo “cinema independente”. Porque o termo “cinema independente”, hoje tão em voga no vocabulário dos debates do cinema brasileiro (e de suas políticas públicas), valeria tanto para um filme de uma grande produtora paulista quanto para um cineasta que filma com 500 reais e uma câmera emprestada. Isso não faz sentido. É um automatismo retórico que atenta contra a diversidade ao nivelar processos e resultados muito distintos. Se os filmes são independentes, são independentes do quê? Os filmes que passaram pela Aurora em Tiradentes nos convidam a pensar que o real “cinema independente” é um cinema de invenção que se faz na diversidade imaginativa muitas vezes a partir de uma parcimônia material. Com isso dizemos que é desejável e nobre fazer filme sem dinheiro? Não, não é isso absolutamente. É preciso na verdade admitir que existem outros modos e modelos de produção, e para isso existir, para essa diversidade existir (e uma diversidade produtiva também é uma diversidade imaginativa), é necessária a desconcentração de recursos e a desconcentração regional do fomento.

A sessão Clássicos de Tiradentes nos revelará um universo de filmes que na verdade atentam contra as duas noções vulgares mais convencionais sobre o “clássico”: a noção de filmes amplamente conhecidos e que fazem parte de uma memória em comum do público e a noção que parasita a ideia de obras de arte que primam pelo equilíbrio e por uma forma de expressão ideal. Os clássicos que veremos aqui apontam uma ausência de unidade expressiva de um filme para outro, não primam pelo equilíbrio, pela eficácia e dramaticidade dos grandes temas morais. Mas ajudaram  a sedimentar uma tradição de radicalidade expressiva que remonta às nossas “tradições modernas” na arte e a um pensamento poético que dispensa as matrizes-modelo, mas ao mesmo tempo se apropria delas sem fidelidade alguma. Anticlássico? A ver.

Os filmes que serão vistos na sessão Clássicos de Tiradentes são aqueles que construíram o lastro que nos traz a este momento e que entendem que a independência tem a ver com o modo de fazer aliado à imaginação, que não desejam responder aos padrões (totais ou parciais) do que se espera do cinema brasileiro como produtos, uma expectativa sempre colonial.

Para isso, escolhemos começar esta nova seção com o filme vencedor dos Prêmios da Crítica e do Júri Jovem de 2010, Estrada para Ythaca, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti. Pois, além de ter sido um dos filmes cuja repercussão deu bastante identidade à recém-criada Mostra Aurora, ele afirma-se como uma grande obra que aplica sua imaginação tanto à estética das imagens e dos sons quanto à maneira de produzi-las. O esforço do coletivo Alumbramento, sediado em Fortaleza, nesse longa e também em seus demais trabalhos, é uma afirmação da força da colaboração, da partilha coletiva, como possibilidade de produção fora dos grandes centros, sem imitar esses centros – e aí está uma característica crucial. Pois muitas vezes as produções fora dos centros, fora dos corpos da norma, tendem quase que naturalmente a imitar as matrizes de poder, seja em sua forma de organizar sua caligrafia ou seja na forma de pensar e organizar o mundo. A batalha de diversidade de pensamento e dos modos de fazer precisa ser ratificada junto à luta pelas demais diversidades. Pois as formas convencionais, o “cinema certo”, o “modo correto”, o storytelling liberal estadunidense se espalham com vigor em produções supostamente contra os modelos da norma. Portanto, aqui, com esse filme coletivo sobre a coletividade, desejamos afirmar esse vínculo entre forma e modo de produção, em nome de uma imaginação que resiste a se tornar um produto pronto para o cliente consumir. Porque o que se afirma aqui é a força da estrada, a beleza do processo e não somente a finalidade do produto.

Além disso, a escolha deste longa passa também pela afirmação de uma árvore, de uma floresta, que sua presença no panorama semeou. O impacto de Estrada para Ythaca, sua influência e inspiração podem ser notados de maneira ampla pelo cinema brasileiro independente até hoje. Desde o longa coletivo mineiro Estado de Sítio, que parte da mesma premissa, dirigido por Gabriel Martins, Flávio C. von Sperling, João Toledo, Leonardo Amaral, Leo Pyrata, Maurílio Martins, Samuel Marotta e pelo homenageado deste ano, André Novais Oliveira, lançado em 2012, evidenciando a ligação entre Ceará e Minas Gerais, até o vencedor recente da Mostra Aurora, Canto dos Ossos (Petrus de Bairros, Jorge Polo), feitos dez anos depois, ou Tremor Iê (2019, Elena Meirelles, Lívia de Paiva), nós temos emanações evidentes em termos de modo de trabalho, afirmação metodológica e geográfica (no caso, entre Ceará e Rio de Janeiro).

E neste sentido chegamos ao curta que acompanha o longa nesta seção Clássicos, Meu Amigo Mineiro (2013, Gabriel Martins, Vitor Furtado). O filme é produzido pelo coletivo Alumbramento e codirigido pelo mineiro Gabriel Martins. Na equipe temos dois dos diretores de Estrada para Ythaca, Pedro Diógenes (som) e Guto Parente (montagem). Portanto, as ramificações não são questões de retórica, mas de evidência. E em termos temáticos e formais, temos a centralidade das relações de aliança (nome de outro filme claramente ligado à árvore aqui descrita, dirigido também por Gabriel Martins, João Toledo e Leonardo Amaral, no ano seguinte a esse curta) e uma exploração livre dos espaços das cidades e das formas do cinema.

Os filmes, o cinema, eles vivem de contaminações, contatos, vivências e relações. Quando trazemos esses filmes novamente ao contato com o público, em 2024, queremos reafirmar que esses trabalhos ainda têm a dizer e apresentá-los às novas gerações, esperando novos efeitos que eles possam gerar a partir da afirmação de vitalidade das possibilidades do cinema brasileiro de invenção feito fora dos métodos industriais e das cidades que monopolizam grande parte da produção do país. E hoje, quando o debate sobre os meios de produção se faz novamente urgente, olhar esses filmes como modelos inspiradores de ações culturais que não funcionam na forma da maximização do lucro, da concentração de renda e do monopólio das formas de pensar, é um exercício no qual temos a mais plena crença de seu sentido.

Francis Vogner dos Reis
Juliano Gomes
Tatiana Carvalho Costa

Curadores