A TRANSFORMAÇÃO DE CANUTO — UM MUNDO, TODOS OS MUNDOS

Se o desafio fundamental proposto pela programação da 27° edição da Mostra de Cinema de Tiradentes é justamente refletir sobre como nos comportamos hoje em relação às dinâmicas de tempo — do sentido macro ao contexto micro, no privado e no coletivo, nas cadeias audiovisuais e nas relações afetivas — não há nada mais justo que sintetizar tais proposições em um filme de encerramento que, ao mesmo tempo que nos apresenta a um novo universo temporal, esgarça também os códigos mais comuns do que conhecemos no campo do cinema independente, elegendo uma relação particular e indefinida com as imagens, as tramas e as funções narrativas, a partir de um exercício cinematográfico que é tanto uma ponte para o futuro como uma série de reinvenções do passado.

O longa-metragem A transformação de Canuto, dirigido por Ernesto de Carvalho e Ariel Ortega, é uma espécie de ficção documental em que as arestas de tempo e espaço são trabalhadas de modo ímpar. Na trama do filme, um homem chamado Canuto transformou-se em uma onça, anos atrás, e agora um filme será feito acerca de sua história. Com isso, surge a pergunta: quem será o responsável por interpretá-lo? E por que tal pessoa deveria ser a escolhida?

Ortega, cineasta guarani, codiretor do filme, cuja obra já havia sido celebrada em edição anterior da CineOP (em 2022, na temática dedicada às produções de Cinema Indígena), já havia dirigido importantes trabalhos no contexto do cinema brasileiro de invenção, independente, dentre os quais estão  Bicicletas de Nhanderu (2011), Desterro Guarani (2011), Tava, a casa de pedra (2012), Mbya Mirim (2013) e No caminho com Mário (2014), mas é com A transformação de Canuto que o cineasta alcança seu mais alto grau de depuração e amadurecimento estético, sobretudo pelo que desafia e confunde enquanto princípio de linguagem cinematográfico.

Filmado em 2016, na fronteira entre Brasil e Argentina, A transformação de Canuto é uma obra corriqueiramente inundada por desvios, desarticulações e indefinições, ora apresentando um registro documental corriqueiro e deflagrado, ora confeccionando planos e construções imagéticas cuja aparência e simetria são exemplares. É uma espécie de palimpsesto: um filme que ocorre a medida em que é feito, em que a distância e a diferença entre real e imaginário encontra-se não no que esses elementos possuem de distinção, mas sobretudo no que há de ambíguo e provocador entre esses mundos.

É na matéria cinzenta dos sujeitos que interpretam e encarnam Canuto que é possível visualizar, de fato, a transformação de uma coisa em outra, de um homem em animal e vice-versa. A mutação, esse estado de variar de um estado de espírito a outro, é, na verdade, o próprio registro narrativo do filme em si. E essa prática, em uma edição de Tiradentes que procura justamente questionar sobre como recebemos filmes enquanto espectadores nos tempos de hoje, parece concentrar um grande desafio. Como assistir a algo que não se define de imediato? Como embarcar em um mistério cujo segredo é a sua própria constituição em si mesmo, o seu próprio princípio?

Em resposta, temos A transformação de Canuto. Que mastiga e retorce essas questões devolvendo para a tela uma experiência sensorial sinestésica, a conta gotas, onde o real, de fato, não é o início ou o fim das histórias e das memórias, ele é, como pediria Guimarães Rosa, o meio da travessia.

Francis Vogner dos Reis
Juliano Gomes
Tatiana Carvalho Costa
Curadores

Rubens Fabricio Anzolin
Curador assistente