LABIRINTOS DA PERCEPÇÃO

Se a edição de Tiradentes deste ano apresenta o desafio de reimaginar formas e modulações do tempo no cinema brasileiro contemporâneo, parece imprescindível abrir uma brecha para aqueles filmes que existem justamente em seus tempos particulares, muitas vezes despreocupados de códigos vendáveis e universais, de fácil adesão e velocidade acessível. Há um universo bastante vasto de filmes brasileiros que se apresentam na contramão de respostas óbvias às demandas do mercado, seja por conta da ressignificação de procedimentos estéticos mais comuns ou pelo desafio de suas durações, como é o caso dos médias-metragens, costumeiramente deixados de lado das programações de festivais e salas de cinema.

A essas obras, cujo corpo e tessitura estão mais distantes da massa hegemônica das imagens contemporâneas, chamamos de cinema de invenção: filmes em que os cortes muitas vezes nos deslocalizam e confundem, em que as premissas não estão às claras, em que o elemento do imprevisível impera diante da era em que todo significante parece necessitar de um significado. Filmes que dificilmente têm a possibilidade de chegar a um grande público ou a uma sala de cinema, justamente pela ideia de que sua adesão seria mais trabalhosa, de que suas temporalidades e formas apresentam um desafio de percepção. A esse desafio, então, respondemos com a Mostra Invenção, na clareza de que é preciso conectar-se às distintas poéticas de tempo e imagem presentes em nosso campo, e de que os eventuais “obstáculos”, se assim pudermos chamar, são na verdade labirintos que abrem portas para outros mundos, às vezes incomuns e desconhecidos, mas constantemente instigantes e inovadores, ousados e perspicazes.

Nesta edição de Tiradentes, a Mostra Invenção terá três sessões de filmes seguidas de debate. A primeira delas nos traz médias-metragens de dois antigos concorrentes da Mostra Aurora, Getúlio Ribeiro (de Vermelha, 2019) e Amanda Devulsky (de Vermelho Bruto, 2023). Em Ausência, Getúlio novamente insere o espectador na geografia rarefeita de Goiânia, desta vez para apresentar o universo da música sertaneja, centrado na figura de Jonas, um rapaz do interior que decide mudar-se para a capital em busca do sucesso na carreira de cantor e compositor. O que, à primeira vista, parece um drama com premissa comum, é logo convertido em um filme coral, onde Jonas encontra-se com figuras distintas da realidade da capital, entre eles o empresário Elber e a possível parceira Fernanda. Ausência recupera um senso de geografia particular já apresentado por Getúlio Ribeiro em Vermelha, e refina ainda mais o seu olhar vibrante, deslocado, com um modo de filmar um tanto quanto enigmático, em que ora a câmera se move, ora permanece parada, mas jamais reproduz movimentos previamente legíveis. Um filme que, ao mesmo tempo, é de cantoria, mas também de silêncios, de graves, mas também de agudos, com os sentimentos derramados a conta-gotas por cada uma das personagens, em um forte abraço à melancolia.

Juntamente com Ausência, Amanda Devulsky retoma sua presença em Tiradentes com o média-metragem Artificial Porém Muito Sensível, em que acompanha quatro personagens femininas, com rostos e nomes desconhecidos, a se registrarem e conversarem com a câmera dentro de ambientes sem pontos de fuga, como quartos e salas fechadas. Essas personagens, cujas aparições são alternadas, questionam-se acerca da solidão que as acomete, de um vazio que as atravessa, questionando sobretudo suas percepções enquanto corpo e imagem. O filme trata da extensão de um trabalho já bastante longevo feito por Devulsky acerca da figura feminina e das imagens digitais, e de como essas imagens podem representar a solidão, o vazio e a melancolia dos tempos modernos. Artificial Porém Muito Sensível trabalha fortemente com a superfície do vídeo, fazendo dela matéria-prima de sua constituição de mundo, e abordando figuras que, mesmo permanecendo no anonimato, podem também ressaltar uma energia e uma consciência universal. Um filme sobre uma opacidade brutal, mas que, em sua forma aguçada, particular, revela pouco a pouco a transparência de um mar de sentimentos.

Já a segunda e a terceira sessão da Mostra Invenção trazem filmes de diretores que, quando vistos em paralelo, representam passado e presente de um fazer cinema desafiador, barulhento e radical da cena do Rio de Janeiro. Filmes da ordem do maldito, que pulsam em direção a zonas de interesse que variam entre a sexualidade e a violência, segmentadas por uma ideia de radicalismo formal voraz, quase aventureiro, de espírito marginal. Nessa toada, apresentamos os filmes Bye Bye Amazônia, mais recente longa-metragem do mestre Neville D’almeida, e o inédito Paixão Sinistra, de João Pedro Faro, que esteve em Tiradentes em 2022 com Extremo Ocidente.

O primeiro deles trata de um ensaio artesanal e singular de Neville acerca das situações que rondam o contexto da Floresta Amazônica, desde a condição de seus moradores até a situação do desmatamento e dos garimpos ilegais. Enquanto isso, o segundo é um drama policial independente, contextualizado em um cenário da burguesia carioca que remete muito aos trabalhos iniciais do próprio Neville D’almeida (a quem Faro homenageia com o nome de sua produtora, Mangue Bangue). Ao mesmo tempo que Neville – outrora o autor da subversão e do radicalismo formal em direção a um retrato violento da burguesia – agora se apresenta olhando em direção aos problemas centrais do Brasil de modo mais poético e solene, João Pedro faro estende esse legado anterior por meio de uma produção dândi, às vezes cartunesca, e bastante imaginativa, com uma relação central e alegórica com o cinema brasileiro produzido nas décadas de 70 e 80.

Cada qual a seus modos, esses quatro filmes dão conta de ser um pequeno repertório daquilo que de mais instigante pode ser o cinema brasileiro, uma vez que as portas da percepção (e das salas e festivais) estejam abertos para receber esses códigos e proposições. Afinal de contas, se o desafio desses filmes encontra-se justamente em suas imagens, em suas articulações às vezes nem tão claras e cristalinas, é porque eles pedem ao espectador que seja mais do que um mero passageiro; eles pedem ao espectador que seja também um aventureiro, disposto a encarar as formas e deformações das obras, disposto a inventar também outros mundos que esses filmes oferecem, uma vez que topamos adentrar seus labirintos.

Francis Vogner dos Reis
Juliano Gomes
Tatiana Carvalho Costa
Curadores

Rubens Fabricio Anzolin
Curador assistente