Nenhuma fórmula para a visão contemporânea de mundo: ver com olhos livres
A núcleo da Mostra Olhos Livres, através dos anos, emana de um modo de amor ao cinema que se expressa por uma mistura de amplitude e imprevisibilidade. Um cinema vasto em formas de ser e ao mesmo tempo sempre diferente do que se espera dele. Quando escolhemos o nome do mítico blog do grande cineasta, crítico e programador Carlos Reichenbach, optamos por uma forma ética mais do que uma linhagem específica do cinema brasileiro? E que forma seria essa? A forma, seguindo a linha de Reichenbach, brota da frase de Oswald de Andrade: “Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres”. O que podemos entender dessa formulação como bússola ética, portanto: os padrões que se impõem em cada época, as modas, os tiques, tudo o que se solidifica ou estabiliza como modo precisa estar em contato com forças de contraponto. Quando se percebe uma suspeita de dogmatismo, de uma sensação de nitidez da “forma certa a fazer”, é preciso pular para outras embarcações.
O capitalismo de informação hoje funciona por perfis baseados em coleta de informações nossas na internet. Pela coleta de dados, projeta-se nosso perfil de consumo, nos encorajando a rumar em direção a uma previsibilidade: comprou isso, portanto vou te oferecer isso, logo vai gostar disso aqui também. Nas plataformas de conteúdo audiovisual online, o mesmo processo se desenha, e vão se formando sensibilidades à moda da uniformidade dos feeds, sempre agradando o cliente com mais e mais redundâncias. Nesses sistemas, somos impelidos a mais e mais do mesmo, pois isso maximiza os lucros e turbina as vendas: perfis estáveis, coerentes, previsíveis. Nosso trabalho na Mostra Tiradentes se baseia num cuidado com os trabalhos que apontam na direção oposta. Aqui não são consumidores do mesmo, mas cidadãs e cidadãos que vão trafegar por um mar diverso de experiências, em grande parte presenciais, vivendo encontros que nos farão diferentes ao final, em ambiente de imprevisibilidade ética. Essa oposição é a base que nos guia na composição da programação e em especial na Mostra Olhos Livres.
Como o tempo segue em várias direções e formas, uma das linhas desse conjunto aqui em questão é a da arte do retrato. O retrato não como um reflexo, mas uma tentativa de inventar uma distância fértil em relação a um personagem, seu contexto, ou ao conjunto deles. As formas de fazer são infinitas. E as distinções são da ordem do tratamento: “re-tratar”. Portanto, nós começamos por um retrato de artista e, de certa forma, começamos pelo futuro. Já no seu título, Terror Mandelão evoca as formas de invenção e reapropriação contemporânea. O nome de um dos maiores líderes democráticos da história, defensor dos guetos sul-africanos e do mundo afora, se tornou no Brasil uma palavra com muitos usos, como uma marca ética que descreve muitas vezes um estilo de música, um lugar de festa e outros sentidos mais. A revolução cotidiana narrada por Felipe Larozza e GG Albuquerque é a do trabalho de um artista contemporâneo que não se enquadra em nenhum modelo disponível de maneira mais convencional, para pensar o que é viver de arte no Brasil hoje. O filme, através de seus jogos de mudança constante, introjetando e digerindo os fluxos das redes sociais e da história do documentário, vai tecendo uma rede do que forma a arte e vida do DJ K, artista de destaque do mítico Baile do Helipa, em São Paulo. Assim como a sofisticada arte de K, o documentário se situa com conforto numa posição que não é contra as convenções do consumo – pois se trata de uma arte inventiva e popular – mas sabe com esperteza entrar e sair das convenções e imposições do mercado. Para produzir arte popular, é possível unir experimentação radical, técnica, metodológica, e isso não é exceção, pois o funk, no Brasil, é a música da maioria. Portanto, Terror Mandelão inverte a lógica preguiçosa do senso comum, pois sabe equilibrar foco e dispersão em um retrato muito nuançado de um artista contemporâneo em ato.
Outro filme que procura desestabilizar os códigos vigentes do algoritmo contemporâneo é o mais recente longa-metragem de Arthur Tuoto, Foram os Sussurros que me Mataram, em que uma importante atriz chamada Ingrid Savoy (interpretada por Mel Lisboa) está confinada em um quarto de hotel à espera do começo de um reality show. Enquanto está em isolamento, a celebridade passa a delirar à medida em que situações bizarras ocorrem, como uma ameaça anarquista e um ataque de paparazzis. Trata-se de um filme cujos acontecimentos surgem quando menos se espera, e o grau de aleatoriedade que algumas situações adquirem é justamente o que vai tonalizar a histeria coletiva que daí se instaura. Arthur Tuoto, que já esteve em Tiradentes em 2014, na Mostra Aurora, com Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças, retorna agora com um filme que coloca em xeque o estatuto da imagem contemporânea, articulando de modo intrigante e nada convencional as crises de comunicabilidade e compreensão do outro, em um regime de encenação antinaturalista, mas que dá conta de concentrar o que talvez seja um dos maiores defeitos de nossa sociedade hoje, que é a falta de escuta.
Buscando ao mesmo tempo continuidade e contraste, chegamos ao filme de Cristiane Bernardes e Tiago de Aragão, A Câmara, que observa as mulheres do nosso Congresso Nacional. Em poucos minutos percebemos que é um filme sobre teatro e performatividade. A distância precisa das lentes do filme nos apresenta uma sequência de situações performáticas: palcos, microfones, câmeras de TV, rituais, tudo é mediado por uma certa teatralidade e o próprio gênero é também teatralidade, como nos ensinou Judith Butler. Portanto, o estudo detalhado que o filme nos apresenta é extremamente atento, que neste mundo que pode parecer transparente há uma diversidade vasta de modos de encenação, em especial para as mulheres e corpos que não são a regra. Portanto, através de uma perspectiva aparentemente cristalina do documentário de observação, temos uma ampla variedade de formas de se exibir, de números sociais e midiáticos que são a carne do funcionamento da política.
Em Soap, temos um olhar sobre os entrelaçamentos entre política e estética no Brasil contemporâneo não só de forma ímpar, mas talvez como contraplano da obra anterior desta seção do festival, um pouco como “enquanto isso…”. Com uma estrutura de rara inventividade, a artista belo-horizontina Tamar Guimarães cria uma espécie de “metasseriado” que conjuga extrema precisão e imaginação em um retrato agudo das táticas políticas e estéticas de combate à extrema direita. Provavelmente, não temos ainda um exercício de autoexame dessa radicalidade no cinema brasileiro em tempos de combate ao neofascismo cultural, que se utiliza da estrutura seriada para produzir uma outra coisa, indefinida, que explode as fórmulas e formatos por dentro.
Em termos de explosão das formas, Aquele que Viu o Abismo, de Gregório Gananian e Negro Léo, é uma obra exemplar. Numa mistura de filme de viagem, thriller político paranoico, temos aqui um mergulho vertiginoso no fármaco-capitalismo geopolítico contemporâneo e sua relação com a expressão artística. O personagem ligado à música aqui não se chama K, mas é kafkianamente chamado de X, e a interpretação de Negro Léo lhe dá nuances inauditas, em especial pelo uso da voz e suas sutilezas. Dois artistas que estão na memória recente da Mostra Tiradentes através de suas obras pregressas fazem aqui um caleidoscópico quebra-cabeças em torno dessa vítima insólita das armadilhas geopolíticas andando pelas ruas da China.
Com Seu Cavalcanti, Leonardo Lacca usa o “gênero” do filme de avô para explodi-lo por dentro. A experiência do longa não nos permite ter certeza do registro performático de Seu Cavalcanti e o filme só investe mais e mais nesse abismo indefinido. A performance fílmica e o teatro social se confundem novamente em uma espécie de comédia documental, que constrói um retrato igualmente opaco e humano. “Seu” não é só pronome de tratamento, mas também de posse, pois a imagem e o sentido desse protagonista são nossos, podemos fazer com ele o que quisermos, se é um herói, um escroque, um ator, não sabemos: teremos que tirar nossas próprias conclusões. Pois o filme de família aqui passa longe da autoexaltação e autoindulgência, tão em voga no panorama dos dias que correm.
Portanto, a forma desse amor ao cinema referido aqui neste texto é a menos narcísica possível, pois depende dos seus objetos, dos filmes, emana deles. A forma do conjunto que aqui se apresenta aprende com o que as imagens trazem, e nossa equipe compõe com eles, buscando junto a estes trabalhos apresentar um retrato afirmativo, vasto, radicalmente indefinido, como maneira de afirmar o potencial inventivo do cinema brasileiro em variadas direções, tendo em comum um gosto pelo que ainda não foi feito, pelo que não está sólido, pela lava do mundo e da existência.
Francis Vogner dos Reis
Juliano Gomes
Tatiana Carvalho Costa
Curadores
Rubens Fabricio Anzolin
Curador Assistente