A VIDA VIRA

O filme Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá (Isael Maxakali, Luisa Lanna, Sueli Maxakali e Roberto Romero) termina com um diálogo em que o personagem título diz: “quando não aqui mais estiver com vocês, vou virar minha fala”. “Virar a fala” é algo que convive nesse e nos demais filmes da Mostra Autorias nesta edição de 2025. 

O sentido que soa mais latente no conjunto é esse de uma ênfase nas trocas e nas transformações. Seja na duplicidade dos músicos que conduzem Centro Ilusão (Pedro Diógenes), cuja permuta (histórica, estética, libidinal) é central como tarefa do trajeto fílmico, ou na fantasmagoria da correspondência de Lota de Macedo Soares habitando a escuridão presente do parque urbano carioca em Para Lota (Bruno Safadi e Ricardo Pretti), nas variações entre contar e ver, simbolizar e ser, entre humano e coisa, textura e vida, entre si e outro, que experimentamos em Uma Montanha em Movimento (Caetano Gotardo) ou nas interações corporais e subjetivas tornadas jogos de montar e desmontar, em Parque de Diversões (Ricardo Alves Jr.). As peças se apresentam para, no trajeto dos filmes, tornarem-se outras. Virar a fala, revirar o corpo, para revitalizar o sentido, criando condições para – eventualmente – restaurar a palavra.

A ideia de autoria assume aqui um caráter essencialmente anti-individual. A possível autobiografia familiar de Sueli Maxakali se torna uma jornada essencialmente coletiva, em que toda uma comunidade humana e extra-humana participa, entre presenças e projeções. O artesanato pluridoméstico de Caetano Gotardo tem como função justamente achar no terreno biográfico, ou na performance do pessoal, linhas de fuga que nos jogam pra fora, para um lugar indeterminado – porém não aleatório –, um espaço de ligações, em que novos laços podem surgir. As possibilidades de encaixe são tema desta espécie de spin-off lúdico do anterior, Tudo que Você Podia Ser (2023): um corpo se torna outro, a paisagem se torna corpo, um afeto muda de mãos, uma sensação que caminha sem dono até seu clímax coletivo final no longa de Ricardo Alves Jr. O travelling lento ao redor do Parque do Aterro do Flamengo, ao mesmo tempo nega e afirma as palavras da criadora, Lota, pois tudo de certa maneira está diferente, entretanto, a espectralidade da nobreza é um dado fundador do território da capital carioca – como atestam filmes anteriores de Pretti e Safadi. Com um análogo ímpeto de geografia sentimental, Centro Ilusão costura sua correspondência através de um inventário musical que dá carne a uma discreta – porque evidente – parábola política sobre o trabalho com arte e cultura em terras brasileiras hoje, que termina com a sugestão de uma aproximação como possível encaminhamento perante um impasse.

“Virar a fala” neste conjunto que aqui se apresenta é justo oposto ao que vemos nos arredores de nossa produção cultural em que experiências fílmicas se reduzem à pobreza do dito como enunciado, ressecadas em tuítes e lacradas. Quando o cinema vira a fala, quando se resume nas palavras que se diz, as corporações do capitalismo de dados vencem mais uma. O cinema como possibilidade de inteligência do artifício é uma superfície de construção para além do médio, da média, do banco de dados, da probabilística do já dito. No sentido oposto, o que este programa de filmes apresenta é uma política radical da nuance. Quem vê necessariamente terá que se deslocar de si mesmo, para acompanhar esses gestos que – em matizes muito variadas – constituem uma linha ética da necessidade do deslocamento. Em oposição à redundância, à reificação, apostando tudo ao dar formas novas a situações singulares.


Pois o autoral está longe de ser um estilo, mas sim uma espécie de disposição de inventar novos desafios para escapar das sedutoras fórmulas que induzem as obras a obedecerem a si mesmas, a se sujeitarem ao espectro das personalidades de artistas-donos, a se encapsularem ao “si mesmo” como constituição de um nicho de mercado. O que aqui vemos é a vitalidade de trabalhos em pleno movimento, remexendo nos sentidos de suas obras e procedimentos anteriores, dando a eles a renovação insuspeita de suas ferramentas. Não são nem os primeiros, nem certamente serão os últimos filmes, mas nos oferecem a oportunidade de ver poéticas ao mesmo tempo em consolidação e movimento – unidas pela indisposição na direção do mesmo, enfrentando a pororoca da história. Pois o que vira, afinal, ficará.

Francis Vogner dos Reis
Juliana Costa
Juliano Gomes
Curadores