UM CAMINHO DO MEIO

Idealizada na última década do evento, a Mostra Autorias dedicou-se a emprestar o olhar a filmes cujo traço estético e poético dos diretores e diretoras era demasiadamente marcado. De modo geral, o conjunto de obras selecionadas nesse certame valorizava as operações mecânicas que circunscreviam assinaturas singulares no campo do cinema brasileiro. Não se tratava de uma lógica necessariamente qualitativa – ser melhor ou pior – mas sobretudo de valorizar longas e médias-metragens cujo corpo era, por essência, distinto da grande maioria. Esse guarda-chuva ia desde a presença de veteranos da produção brasileira, como Julio Bressane, Walter Lima Jr. e Ruy Guerra, até nomes recentes que despontaram no cenário na última década, como Clarissa Campolina.

Agora, em 2024, a Mostra Autorias continua perseguindo assinaturas estéticas ímpares, mas em novo desenho e configuração. Aquilo que antes era uma manifestação de expressões “fora de competição” se tornará uma competição especial, a ser exibida no primeiro final de semana da Mostra de Tiradentes. Por sua vez, seu recorte aposta em realizadores com trajetórias marcantes na última década, cujos primeiros trabalhos, em alguns casos, tiveram força e expressão em edições anteriores de Tiradentes. É um gesto de olhar para filmes e assinaturas que são ainda frescas e arejadas, que necessitam ser vistas e reconhecidas, mas que também já encontraram caminhos e possibilidades de exibição diante de suas (nem tão) breves trajetórias. É menos uma espécie de “meio do caminho” desses cineastas e muito mais um “caminho do meio” para filmografias vivas e pulsantes, em plena transformação.

Nesta primeira edição competitiva, o mineiro Ricardo Alves Jr. retorna ao festival para a exibição de seu mais recente longa-metragem, Tudo que Você Podia Ser. Com um olhar destinado à amizade de quatro integrantes da comunidade LGBTQIAP+ – Aisha Brunno, Bramma Bremmer, Igui Leal e Will Soares, importantes figuras do teatro mineiro – o filme repousa sua atenção às relações de afeto estabelecidas no cotidiano da capital mineira, quando umas dessas personagens precisa mudar-se para São Paulo. Muito ligado ao modo como filma o corpo em movimento na cidade, o cinema de Ricardo Alves Jr. permanece delicado e cuidadoso, mediando distâncias, filmando entre frestas e conectando-se diretamente com o âmago e a personalidade das figuras representadas.

Outro retorno importante a Tiradentes, também presente na competição da Autorias, é o cineasta Guto Parente, vencedor da Mostra Aurora de 2010 com o longa-metragem Estrada para Ythaca, codirigido com Luiz Pretti, Ricardo Pretti e Pedro Diógenes. Em Estranho Caminho, Guto filma uma Fortaleza em estado de melancolia, assolada pelos primórdios da epidemia da covid-19. Lucas Limeira interpreta David, jovem cineasta que visita sua cidade natal para o lançamento de seu primeiro longa-metragem em um festival de cinema. Durante a viagem, o vírus começa a se espalhar e a cidade entra em estado de lockdown. Sem ter nem o que comer nem onde dormir, David vê-se obrigado a reencontrar o pai (interpretado por Carlos Francisco) que não visitava havia anos, restabelecendo uma relação outrora abandonada e repleta de desafios a serem enfrentados. Treze anos após a presença na Mostra Aurora, Parente permanece reinventando modos de registrar a solidão e as relações humanas, sobretudo entre artistas e não artistas, nesse filme que é, ao mesmo tempo, um olhar sobre a distância, física e emocional, familiar, e a necessidade de completude em um momento cujos sentimentos estão cada vez mais apartados.

Com atuação marcante na cena teatral brasileira, a atriz e diretora Bia Lessa chega à competição da Mostra Autorias com seu mais novo trabalho, O Diabo na Rua no Meio do Redemoinho, adaptação cinematográfica da obra-prima de Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas. O filme possui como ímpeto ser uma espécie de transcrição do périplo de Riobaldo pelo Brasil profundo, abordando desde sua paixão por Diadorim até o antagonismo travado com Hermógenes. Diretora de importantes longas-metragens, como a adaptação de O Eleito, de Thomas Mann, para as telas do cinema com Crede-Mi (1997), e do mais recente Então Morri (2016), Bia Lessa empresta à narrativa de Rosa uma energia impetuosa e barulhenta, em constante diálogo com a encenação teatral, e que possui na expressividade performática de seus atores um de seus mais simbólicos trunfos. É um filme de arrojo cênico, mas também de atenção textual importante, que demarca a expressividade de um trabalho teatral longevo na sua transcrição feérica para o cinema.

Por fim, a Mostra Autorias traz como último competidor o longa-metragem Yvy Pyte – O Coração da Terra, dos cineastas Alberto Alvares e José Cury, ambos com vasta experiência na produção de longas e curtas-metragens. O filme registra o retorno do cineasta guarani Alberto Alvares (Tupã Ra’y) para sua aldeia natal, onde procura chegar ao território sagrado de Yvy Pyte, considerado pelos Guaranis como o centro da Terra. A obra é uma espécie de road movie, mas não trata tão somente de uma viagem no sentido do deslocamento espacial: é também um processo de andança, particular, sentimental, temporal, que mescla uma relação pessoal do protagonista e de seu povo com uma poética simbólica do território. É o cinema formulando ideias sobre memória, corpo e presença, imbuído de uma temporalidade que é antes de tudo circular e retroativa.

A competição da Mostra Autorias nasce assim, com filmes cuja estrutura formal do cinema aparece em constante mutação, deambulando por diversos eixos temáticos, políticos e estéticos, mas sobretudo salientando a força das particularidades de cada um dos autores em questão, na tentativa de impulsionar tudo aquilo que seus cinemas já são, e tudo o mais que podem vir a ser.

Francis Vogner dos Reis
Juliano Gomes
Tatiana Carvalho Costa

Curadores

Rubens Fabricio Anzolin
Curador assistente