QUE FILMES SÃO ESSES?

Este texto será dividido em duas partes, e pedimos atenção redobrada a ele nesta edição do festival: a primeira contextualiza a mudança de estatuto da Mostra Olhos Livres dentro da Mostra de Cinema de Tiradentes e frente ao ambiente de mercado do cinema contemporâneo brasileiro e internacional. A segunda falará dos filmes programados. O que esses filmes propõem e por que compõem essa programação? Recomendo vivamente ao público, jornalistas, críticos, realizadores, programadores que leiam o que escrevemos. Não toma grande parte do escasso tempo que dispomos e é um convite ao debate. O que escrevemos aqui não é mero gesto de institucionalidade protocolar, não é vaidosa ou constrangida justificativa de nossas escolhas, mas a proposição de um debate fundamental. Por isso o festival existe e reúne gente para ver filmes e transformá-los num fato de cultura, por isso não podemos prescindir do debate. O convite está feito.

O primeiro ponto: nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. A partir deste ano, a Mostra Olhos Livres ocupa o lugar de destaque no festival. Os motivos são variados e tão sinuosos quanto o percurso coletivo de todo o campo cinematográfico da última década, mas o principal deles é reconhecer uma cena da produção independente brasileira variada, complexa, heterogênea, que dentro de seus pressupostos não adere a concessões e na maioria das vezes não encontra condições materiais adequadas para se realizar – seja na forma de recursos pessoais ou públicos. E é preciso entender quais concessões são essas às quais esses filmes não aderem. Já passou da hora de a gente deixar de apontar concessões no modelo do “cinema comercial de Hollywood”. Hoje, no nosso campo, as concessões habitam outro território que é o do circuito de mercado internacional, sobretudo o europeu, onde vemos esforços de gerenciamento de carreiras que sustentam um mercado de atravessadores (sejam eles de curadores locais, de fundos, de laboratórios e outros mediadores de carreira), mas que na maior parte dos casos fazem os filmes brasileiros entrarem nesse circuito de festivais de maneira coadjuvante na cota de “singularidade do sul global”. Olhemos os últimos festivais de Cannes e Berlim, por exemplo. Desde a pandemia houve um realinhamento conservador na celebração de grandes autores consagrados dos EUA e Europa, alguns da Ásia e, no geral, os “novos realizadores” compunham um cenário de filmes mais comportados, íntimos dos valores de produção e dos valores narrativos “universais” (quem determina?). 

Recentemente o crítico e programador Roger Koza escreveu no X (antigo twitter), em ocasião do último festival de Berlim, que hoje se cineastas como Robert Bresson, Glauber Rocha e Jean-Luc Godard fossem jovens e fizessem seus primeiros filmes, talvez não fossem selecionados para a programação dos grandes festivais. Existe, obviamente, uma recusa ao estranho e ao “não familiar”, em nome da adesão ao “bom produto” – de bom acabamento e grande satisfação do público consumidor. O “cinema de autor” virou (há décadas, na verdade) uma commodity. Quanto a isso, nada de novo no front. Como disse Godard uma vez, da política dos autores descartou-se a política e só se ficou convenientemente com o autor, sujeito abstrato. A política, no caso, apontava dissenso, uma divisa em tensão com o establishmentcultural.

Hoje, qual é a divisa possível? O que diz o establishment? Quais são os seus mecanismos de naturalização do mesmo? Qual é o papel objetivo dos festivais internacionais? Eles falam em nome do quê e de quem? Qual é o lugar neles dos filmes latino-americanos, africanos e asiáticos? Os bárbaros do sul global não são bons o bastante por quê? Usam tecnologias anacrônicas? Estilisticamente são dissonantes ou precários? São produtos sem lugar, ou seja, sem valor de mercado? O valor de mercado seria o exótico e o pitoresco com regular apuro técnico? Obviamente, nem todos os filmes brasileiros selecionados para esses festivais respondem a essa figura esboçada aqui. Não sejamos injustos. Mas muitos o fazem, inclusive como projeto. É necessária uma conversa franca sobre isso e essa seria uma ocupação da crítica e do jornalismo, para além do juízo estético e da transmissão de informação. Há muito trabalho a se fazer, principalmente quando ouvimos de programadores de festivais importantes critérios de recusa de filmes baseados em “personagem” e “narrativa”, com um raciocínio bem similar aos dos agentes norte-americanos das plataformas de streaming. 

Existe do ponto de vista político e econômico, e também cultural, uma configuração de valores que precisa ser indagada. Pós-pandemia, pós-streaming, como certo mercado de cinema sobrevive? Como o cinema das grandes metrópoles globais tenta preservar sua hegemonia, quando a importância da forma cultural e econômica disso que convencionamos chamar de cinema no século XX está ameaçada pelo oligopólio das grandes corporações? Como fazer valer o “valor artístico” do cinema (que é o de invenção, de deslocamento do mesmo, de desafio) frente a um comercialismo voraz que cria padrões automáticos de critérios narrativos, dramatúrgicos e estéticos? Qual é a função real da maior parte dos labs? Traduzir a imaginação selvagem a uma lógica que recusa o indomável estranhamento? O quanto nós brasileiros e latino-americanos aderimos a isso acriticamente? Uma observação: é mais fácil hoje encontrar na iInternet influencers analisando o desempenho (grifo meu) de um filme segundo as regras de roteiro da cartilha McKee do que uma crítica escrita sobre o estilo e a poética de um filme. Em uma época de discursos em defesa do antinormativo nos modos de vida adere-se com famigerado automatismo à normatividade estética e narrativa. Ao padrão. E o pior: à naturalização da reprodução de padrões.

Há de se questionar o quanto essa realidade do mercado baseada na mercadoria e em valores abstratos coopta as energias de transformação no Brasil. Assunto vasto e que envolve o campo das ideias, o exercício das políticas públicas e o background profundo desse assunto diz respeito, no fim das contas, à nossa soberania imaginativa

No contexto atual é preciso afirmar, e o festival coloca isso no centro de seu próprio coração, que existe uma imaginação brasileira que desde o fim do mundo propõe filmes e práticas fílmicas que insistem em existir à revelia das condições mínimas de existência. Não é questão de fazer elogio aos supostos gestos heroicos e românticos de bravos e bravas cineastas, mas de afirmar que nas margens do continente se faz um cinema que forja a imagem de uma época e de um mundo com proposições tão abertas quanto agudas. Um cinema que busca imagens inéditas. Se num momento foi preciso reconhecer essa novidade nos emergentes da Mostra Aurora, hoje é preciso apontar que esse cinema já possui um lastro e obras que se fazem à revelia das condições ideais de um “sistema de filme de autor” (que não existe no Brasil) e que segue nos intrigando. É preciso afirmar o que persiste e resiste, porque é a responsabilidade que a realidade nos coloca. 

Numa época em que as interdições às imagens, o moralismo empedernido em todo tecido social, o pragmatismo, o cinismo e a “virtude” como bússola da produção cultural se naturalizaram – inclusive entre gente esclarecida – é preciso reafirmar e lançar o olhar a esses desvios, pois os desvios nos levam ao desconhecido.

O segundo ponto: ver com olhos livres. Se fôssemos fazer um desenho da programação da Mostra Olhos Livres, não seria um belo e bem composto afresco ou uma figura de economia e rigor conceitual admirável pela clareza das linhas. Na verdade, seria possível ver a sugestão de uma paisagem limítrofe povoada de fantasmas, com ondulações de tons escuros, sombrios e algumas rajadas fortes de luz auroral que, paradoxo, ilumina um horizonte arruinado. Algo entre o terrível, a melancolia e a galhofa que se fazem como fabulações cênicas. A fabulação cênica, no caso, desafia a fábula convencional (narrativa com fim moral) que hoje parece determinar o automatismo das narratologias contemporâneas, coisa que não está só nos produtos audiovisuais do cinema e do streaming, mas também na performance dos poderes políticos que reduzem a trama do presente a meia dúzia postulados que ligam um passado idealizado a um destino final. 

A fabulação cênica dos filmes que integram a Mostra Olhos Livres aposta em outras estratégias, muito mais ligadas ao provisório e à construção de uma circunstância laboratorial, daí o caráter teatral e performático de alguns filmes (Deuses da Peste, de Gabriela Luiza e Tiago Mata Machado, A Vida Secreta de meus Três Homens, de Letícia Simões, Batguano Returns – Roben na Estrada, de Tavinho Teixeira e Frederico Benevides, O Mundo dos Mortos, de Pedro Tavares) e a reorientação da experiência sensível frente a uma paisagem tão mortuária quanto vivazmente misteriosa ou tortuosa, como no terror gore (Prédio Vazio, de Rodrigo Aragão), ou no olhar absurdista para a paisagem como história e para a história como paisagem (As Muitas Mortes de Antônio Parreiras, de Lucas Parente), seja o flânerie vadio pelo Centro velho de Recife (Primavera, de Daniel Aragão e Sérgio Bivar).

Se algo vibra em comum em filmes tão díspares, é o sentimento de que o mundo que erigem sugere a coexistência de tempos distintos que se interferem. Os personagens habitam a memória, experimentam a escassez (futura? presente?) e o desaparecimento não é mera ausência, mas espectralidade ativa. Quantas tragédias, demolições, destruições, mortes nos deram a ilusão de que o fim (do mundo) foi uma espécie de derrota absoluta, merecida e até comemorada? Em Batguano – Roben na Estrada, o nomadismo de Roben em um carro sem destino em alta velocidade na BR é atravessado pela presença, via montagem, do Bateman – agora fragmento de memória e uma voz provocadora que se faz como superego excitante – e dos pais do diretor Tavinho Teixeira, falecidos há alguns anos em decorrência da covid-19. Batguano Returns parece um corpo feito (ou refeito) de destroços, sucata e matéria-prima nobre, tem algo de espetáculo mambembe em movimento com números executados por um homem só. Realizado com câmeras diferentes e equipamento mínimo, com uma equipe variável em tamanho a se depender da etapa, mas sempre pequena, com extratos de experiência, digressão, dor e deboche, é um filme artesanal que parece resultante de um contexto de guerra, menos pelo tema e mais pelo temperamento.

Assim também é Deuses da Peste, de Gabriela Luiza e Tiago Mata Machado, ambos vencedores da Mostra Aurora em outras edições. O filme é um laboratório de caráter teatral provisório e circunstancial, realizado entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2022. É uma obra de esboços que, por um lado, tem um aspecto de teatro tragicômico elisabetano (mas de catacacumba e sem povo), por outro, performa as farsas grotescas do repertório memético das imagens contemporâneas, em especial aquelas que se fazem como propaganda ideológica ou contraideológica. A tragicomédia insular shakespeariana aqui é descontínua, fragmentária, perplexa e o desespero (o seu sentimento primordial), só relativizado com algum humor insuspeito. Ai o barroco, na luz, na parafernália sonora, no excesso estilístico cria um desvio que toca mais o patético do que o trágico. Deuses da Peste é um filme de registros discrepantes que olha para o fundo do abismo com alguma ironia e que o faz como um grande laboratório teatral que é verdadeiramente o postulado criativo do filme. Mas ao mesmo tempo tem uma inflexão nessa teatralidade ao investir nas possibilidades dos artifícios via montagem, som e na pós-produção que encontra assim com alguma alegria o efeito memético, tão íntimo da picardia debochada contemporânea.

O teatro espectral em alguns desses filmes (e também em exemplares da Mostra Aurora) oferece um tempo e um modo de criação radicalmente distintos daqueles propalados pelos padrões “de mercado” em que um filme de tudo seria um projeto narrativo a ser executado – e que teria valor especulativo no mercado dos fundos e labs – e não é diferente em A Vida Secreta de Meus Três Homens, de Letícia Simões. O filme faz da memória campo da pesquisa teatral (como nos outros, um teatro de fantasmas). A memória da diretora, da família da diretora, dos três homens que a criaram (o pai, o avô, o padrinho). Mas essa memória não é exatamente movida por afeto e sentido de homenagem, mas pelo desejo de investigação de personagens e, por meio desses personagens, de uma investigação histórica. São três homens e um novelo de contradições. Diferentes e outros documentários confessionais que relacionam história e vida pessoal que vimos nos últimos anos, esses três homens não são exemplos de virtude, nem heróis desconhecidos e nada parecido com isso. Algumas deduções sobre eles são duras. A própria diretora entra em cena para ser sabatinada pelos atores e atriz do filme. É um documentário que se apropria da fabulação cênica de natureza teatral e assim se distancia do objetivismo documental. Dá a opacidade e a revelação que esses fantasmas nos sugerem.

O Mundo dos Mortos, de Pedro Tavares, é mais estatuário do que teatral. Os personagens recitam e narram. Como em Huillet & Straub, são corpos que falam. São anjos, demônios e humanos, no segundo dia da morte de Cristo (o diz em que a tradição do Cristianismo oriental diz que “não há nada”), sozinhos ou a dois. O filme é muito fiel ao seu material de origem, menos do ponto de vista de uma profissão de fé e mais do filosófico: a palavra toma o lugar do espírito no ser. O que um filme como esse teria a ver com o cinema brasileiro dos anos 2000? O filme é fruto de uma jovem cinefilia – em especial a carioca – com gosto pelo experimental, que acompanha Julio Bressane e o cinema contemporâneo (Eugène Green, Albert Serra), com gosto pelo artifício e pelas conquistas cromáticas e construções sonoras da pós-produção digital. O cenário tropical assumido como paisagem de uma mitologia do cristianismo primitivo não deixa de ser um gesto com alguma força de paródia.

O cenário natural por sua vez é a matéria de As Muitas Mortes de Antonio Parreiras, ficção absurdista de Lucas Parente que faz uma grande digressão visual e filosófica sobre a obra, a relação com o tempo e a natureza do pintor Antonio Parreiras (1860-1937). Natural de Niterói, Parreiras, pintor que se fez entre a tradição acadêmica e Modernismo, encontrara na sua pintura de natureza uma luz brasileira e um modo de representação que se desvia dos modelos mais oficiais. Ou seja: espaço natural e corpo. Romântico, a visão da natureza teria um peso decisivo na identidade de um país em formação. Mas isso não se faz como uma docu-ficção, mas como uma viagem sob o efeito de hipnose. O filme, com sua narração (e narrativa) em transe, tem um substrato histórico e figurativo, mas é atravessado pela mística da imagem, ou seja: a força das paisagens naturais de Antonio Parreiras possui a força de uma “visão”, não de um mero olhar mimético. O que poderia ser um modesto filme histórico vira um ensaio ocultista.

O fantástico, o ocultismo está na chave tradicional do cinema de gênero em Prédio Vazio, de Rodrigo Aragão, que parte de um espaço: a conhecida e solar paisagem de Guarapari, no litoral capixaba, durante o Carnaval. Desse espaço evoca outro fabular e artificioso com as cores vivas que evocam a cenografia de Dario Argento: um prédio vazio e mal assombrado por almas penadas, que só tem como moradora fixa uma mulher, interpretada por Gilda Nomacce. Ali a filha procura a mãe que lá estava hospedada e desapareceu. Essa relação discrepante entre a locação e o cenário hiper-artificioso é incomum no cinema brasileiro, assim como um filme de horror que procura com tanta persistência as cores locais para construir uma fábula terrível é um caso (entre outros) a se prestar atenção. Aragão, um dos principais criadores de monstros e grande artista dos efeitos práticos no cinema brasileiro, aqui se aproxima de um ambiente urbano e contemporâneo.

A Primavera, de Daniel Aragão e Sérgio Bivar, tem como paisagem, fundo e ambiente uma Recife de paradoxos: contemporânea e anacrônica, cínica e rasgadamente romântica, de personagens ingênuos, mas também com astúcia de serpente. Um poeta de rua se apaixona por uma garota que faz programa, ela vende o corpo e ele, como o próprio diz, vende a alma. Os personagens flanam pelas ruas do Centro velho, se amam à beira-mar e vivem “dando seus jeitos”. A câmera febril com lente grande angular os persegue e parece tão “aérea” e esparramada no espaço quanto os próprios personagens. Existe algo em A Primavera curioso e provocativo: ele mostra caricaturas, personagens superficiais e, de novo um paradoxo, vai fundo neles. A primavera possui na sua construção de mundo uma sensibilidade e uma orientação diversa do que vemos no cinema contemporâneo brasileiro no que diz respeito à cultura urbana, jovem e “progressista”. Existe nessa opção um tom quase cínico de paródia, um pouco como Sergio Bianchi já fez em São Paulo, mas aqui a dupla de diretores o faz de maneira menos neurótica.

Esse grupo de sete filmes não é uma proposição somente dos exemplares mais interessantes do ano, mas propostas de deslocamento subjetivo, filmes que nas suas apostas formais podem nos dar outras perspectivas, certamente incitarão em nós algum desejo de palavra nova, de reorientação (ou desorientação) do juízo. A programação não aposta em exemplares de perfectibilidade técnica segundo os padrões standard (preferimos a técnica a serviço da imaginação e da beleza), nem no familiar (no “não estranho”), e nem se lança ao flerte barato com o “público de festival” (ou o “público de cinema arthouse”), nem se interessa em obras que possam ter como valor soberano o seu suposto “caráter universal” (candidatas a bons produtos). Queremos uma visão prismática da imaginação brasileira, atravessada pelo seu tempo (anos 2020) ou por outros (1870, 1975 ou 1999). Se a pergunta “que cinema é esse?” prevalecer ao fim da experiência, nosso trabalho terá tido êxito, porque é justamente a partir daí, de uma pergunta como essa, que talvez nos daremos conta de que há muito (há tudo) a ser feito.

Francis Vogner dos Reis
Juliana Costa
Juliano Gomes

Curadores