VOLTA AOS DESLIMITES

A variedade formal e temática dos 21 curtas-metragens que compõem a Mostra Panorama aponta simultaneamente para consolidações e mudanças de tendências dos últimos anos. Arrefecida a pandemia de covid-19 e trocada a situação política do país, a maioria dos filmes voltam a outras centralidades. Ainda assim, apontam, entre outras coisas, para latentes arestas de nossas relações sociais, interpessoais e ambientais, destacando-se assuntos como: memória histórica, familiar e cinematográfica; relações de trabalho; complexidades das masculinidades; encontros e contrastes culturais devido aos fluxos migratórios contemporâneos.

É dada também grande atenção a nossas históricas relações com a terra, tanto a partir de modelos de vida não hegemonizados, como, por exemplo, os regidos pelas cosmovisões indígenas, quanto a partir de perspectivas explicitamente críticas aos caráteres predatório e exploratório de recursos naturais e humanos fomentados e mantidos pelo capitalismo ocidental.

Os documentários e os filmes-ensaio se destacam como formas reflexivas e, em muitos casos, acabam por contaminar propostas narrativo-ficcionais. Nesse sentido, os hibridismos mais transparentes entre documentário e ficção – já que, sabidamente, a existência dessa divisão pode ser sempre questionada – aparecem como tendência que possibilita abordagens diretas e, ao mesmo tempo, mais criativas sobre realidades amplas em meio à necessidade de reinvenção e reconstrução do país e de nossas dinâmicas cotidianas.

Assumida a influência dessas tendências na própria estruturação da programação, a Mostra Panorama desta edição volta a nomear suas sessões como forma de opacizar percepções e amarrações objetivas – também fruto de um construto um tanto ficcional e friccional – dos filmes, abrindo-se para seus orgânicos diálogos com a temática da Mostra de Tiradentes neste ano: “As Formas do Tempo”. Assim, inicia com a sessão “Entre o Visível e o Interdito”, na qual se propõe relacionar filmes que lidam com históricas ausências e presenças de determinadas imagens no cinema, mesmo quando a ausência é paradoxalmente marcada pela forte aparência e camada representacional dos materiais imagéticos.

O curta-metragem de abertura é Veredas Tropicais, de Fábio Andrade (RJ), que alia a pesquisa sobre história do cinema brasileiro à realização de filmes. Nele, o parecer da censura mostrado na tela é explorado como imagem e dado de recepção e repressão político-erótica durante a ditadura civil-militar brasileira; imagem-dado que medeia o que vemos e o que é ou poderia ter sido Vereda Tropical (1977), curta-metragem de Joaquim Pedro Andrade.

Em seguida, Aqui Onde Tudo Acaba, do Duo Strangloscope, composto por Cláudia Cárdenas e Juce Filho (SC), propõe uma montagem experimental de material filmado em película por indígenas que transita entre a ficção mítica e o documentário. O intercâmbio de tecnologias para a construção e a sobreposição de imagens expõe apropriações e estranhamentos a partir de contrastes e encontros entre raças, gerações, culturas e temporalidades.

Depois, Nosso Panfleto Seria Assim, de Leandro Olimpio (SP), apresenta-se como uma contra-análise do que o documentário de cunho sindical parece querer mostrar. Nele, a expressa apatia política dos trabalhadores para compor a militância é acompanhada por uma aparente decadência dos modelos sindicais para gerar engajamento; modelos aqui registrados com imagens simultaneamente viscerais, agressivas, esperançosas e de exposição de vulnerabilidades.

Por fim, Fala da Terra, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca (PE, PA, SP), dialoga com as lutas pela terra travadas por membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Ao propor uma ruptura no regime representacional, assumindo um caráter marcadamente documental ao seu final, o curta, por um lado, reacende o debate histórico sobre as abordagens estéticas e políticas nos modos de retratar corpos em ação militante. Por outro, revela um descontrole inédito do artifício montado pela própria dupla de diretores, de autoria conhecida no circuito brasileiro.

A segunda sessão da Mostra Panorama, intitulada “Escute Baixinho”, relaciona filmes que, de formas sutis, mobilizam complexidades de distintas personagens com personalidades, papéis e atuações marcantes dentro de suas realidades. Inicia com o curta Tato, de Pedro Carvalho (MG), em que o contraste entre os trabalhos de tatuador e pedreiro desempenhados pelo protagonista leva à reflexão sobre a fisicalidade de diferentes atividades manuais tidas como mais rudimentares ou mais delicadas para sustentar, desenhar e estruturar a vida.

Em seguida, Homem de Verdade, de Rafael Rudolf (SP), utiliza imagens de arquivo e filmagens contemporâneas para a construção de uma autoficção que revela tentativas joviais e adultas do autor para dar vazão a desejos por vezes interditados em uma sociedade heteronormativa. Assim, possibilita acesso a diferentes épocas de um universo pessoal “autovoyeurista” do protagonista, que cria, exibe e aprecia cenas de sexo e do próprio corpo nu ou seminu em frente às câmeras.

Já o documentário Fale Baixinho, de Pedro Balderama Macedo (SP), mostra-se como um representante dos filmes-ensaio sobre memórias familiares e/ou sobre personagens de família. Seus diferenciais são a incorporação da velocidade dilatada dos afazeres da personagem central, a avó do diretor, na própria temporalidade do curta, e a explicitação de pontuais, pacientes e carinhosas explicações dadas a ela sobre as premissas do dispositivo cinematográfico utilizado para retratá-la. Tudo isso enquanto acompanhamos exposições calmas de parte de suas memórias.

Depois, Não Tem Mar nessa Cidade, de Manu Zilveti (RS), realizado em contexto de formação universitária em cinema, fricciona os limites das formas documentarizantes e ficcionalizantes de filmar para contar, de forma próxima e sensível, a história de amor, parceria e inexorável separação de uma mulher e um homem universitários africanos que vivem seus últimos dias juntos no Brasil.

“Estranho Maravilhoso” é a sessão de meio entre as cinco que compõem a Mostra Panorama, e reúne filmes que quebram expectativas quanto a trivialidades de nossas relações sensoriais com o mundo. Ela começa com Até o Último Sopro, de Benjamin Medeiros (SP). Também realizado em contexto universitário, a partir do Looking China Youth Film Project, o curta-metragem documental explora o impacto inicial e duradouro do som de flautas de suona. Os detalhes sobre a Música Popular de Fuzhou, na China, quase não nos chega de imediato, borrando  para os espectadores o comumente explorado e esperado didatismo documental.

O segundo filme da sessão, O Tempo É um Pássaro, de Yasmin Thayná (RJ), insere em si um caleidoscópio de trilhas sonoras (com destaque para o funk) e formas de filmar que dialogam com a fricção narrativa proposta entre individualidade e coletividades cultural e familiar, entre tradicionalidade e contemporaneidade. O contexto do carnaval, que ancora a manifestação cultural bate-bola nos subúrbios do Rio de Janeiro, reitera como potências as sinuosidades do filme e a subversão das normalidades abordadas nele.

Já em Brujeria, de Ian Abé (PB), a exploração experimental de sussurros guturais e da respiração marcada na banda sonora, junto a imagens subjetivas de perambulação na floresta e em uma vizinhança urbana aparentemente assombrada, cria uma atmosfera de fantasmagoria e horror. A filmagem feita em película dialoga com as ideias de revelação do obscuro e da memória do que é ou foi vivo.

Em seguida, Mborairapé, de Roney Freitas (SP), apresenta outra forma de hibridismo entre documentário e ficção, ao colocar na tela pessoas indígenas da aldeia urbana do Jaraguá, em São Paulo, não apenas cantando rap em português e em guarani, mas também aprendendo e refletindo como e por que fazê-lo. É a partir daí que se dá a jornada do protagonista Pico do Jaraguá acima: impulsionado por mensagens de diferentes e fabulares parentes, ele caminha para encontrar seu caminho como letrista de rap, atento ao som que vem do centro da Terra.

A sessão finaliza com Dona Beatriz Ñsîmba Vita, de Catapreta (MG), único curta-metragem de animação a compor a Mostra Panorama. O filme tem como protagonista uma estranha e interessante personagem mulher negra que mutila o próprio corpo para criar réplicas controladas de si. Assim, tensiona e alarga, em termos de forma-conteúdo, premissas e tendências contemporâneas dos chamados “cinemas negros brasileiros”.

A penúltima sessão da Mostra, de nome “Solos Personas”, foi pensada em torno das forças de experimentações dramatúrgicas de diferentes filmes e dos jogos de atuação mais frontalmente estruturantes de suas propostas. O curta de abertura é O Chá de Alice, de Simone Spoladore (RJ), que reinterpreta e põe em situação de chá-banquete os personagens da história criada por Lewis Carroll, jogando luz sobre uma Alice sonolenta e existencialista.

Depois, Samuel Foi Trabalhar, de Janderson Felipe e Lucas Litrento (AL), põe em cena um hibridismo bem diferente dos mencionados ao longo deste texto; o hibridismo entre as personas da vida pessoal e as personagens vestidas no âmbito alienante do trabalho. A reflexão simbólica é tratada de forma literal e cômica no filme, ganhando camadas raciais no sentido das “máscaras brancas” usadas por pessoas negras para sobreviver, ao ter como protagonista um jovem negro cujo trabalho é dançar em frente a semáforos na rua fantasiado de boneco-propaganda branco.

A pressão do trabalho é mobilizada e percebida de forma diferente no curta-metragem seguinte. Jaci, de Bruno Lobo La Loba (CE), é mais um filme realizado em contexto de formação em Cinema, e apresenta uma personagem-título que, devido a um estado mental que a impossibilita estruturar a própria vida, vai deixando os trabalhos como arquiteta acumularem sem serem entregues. Único set do filme, a casa da personagem, bem como a própria gradação de intenção da atuação, reflete seu emocional: desde as sombras e chuvas internas até alguma possibilidade de luz vinda das frestas.

O tema do trabalho e o clima soturno se mantêm, mas ganham qualidade totalmente diferente em Segunda-Feira, Então. O curta de Julio Pereira (PE) traz certa novidade à tendência atual dos filmes sobre motoboys, ao ter como protagonista uma motogirl que é pressionada a pagar o aluguel da casa em que mora sozinha com a filha. Seu medo de, como trabalhadora precarizada, não ter dinheiro para honrar o pagamento dita a atmosfera e a aposta do filme em um gênero cinematográfico. Assumindo a estética do terror trash, o curta constrói o proprietário cobrador de aluguéis como um sanguinário, bestial e tosco monstro comedor de inquilinos.

“Idades da Terra” é o título da última sessão da Mostra Panorama, construída em torno de filmes que amarram micro e macro-histórias dos brasileiros e do Brasil e mostram vivências como rituais de passagem entre tempos-espaços. Seu primeiro curta-metragem, Quebrante, de Janaína Wagner (PA), mistura documentário e filme-ensaio ao tecer relações entre a poeira cósmica da qual resultamos e os fragmentos que compuseram toneladas de terra deslocadas para a construção supostamente desenvolvimentista da Rodovia Transamazônica, no Norte do Brasil. Assim, procura e apresenta, entre outras coisas, paisagens extraterrestres, alienígenas em nossa própria terra/Terra.

Em seguida, o curta Pe Ataju Jumali ouHot Air (Ar Quente)”, do coletivo “Unides contra a Colonização: Muitos Olhos, um Só Coração”, formado por Margarita Weweli Lukana e Juma Pariri (SP, RJ), dirige ao norte global um discurso contracolonial performático e videoartístico que endereça responsabilidades pelos danos ambientais causados pela emissão de gases poluentes em prol do desenvolvimentismo capitalista. Ao parir sementes envoltas por plástico, a vagina escancarada na tela funciona no filme como símbolo dos impactos e das esperanças necessárias em meio aos ataques ao meio ambiente.

O atravessamento histórico das lutas contra as explorações não só da terra, mas também das pessoas que nela trabalham e vivem é pilar de Cabana, curta-metragem de Adriana de Faria (PA), que dá protagonismo às mulheres negras da Revolta da Cabanagem, ocorrida entre 1835 e 1840 na Amazônia paraense. No filme, o presente é explicitado como devir das lutas travadas em outros períodos históricos do Brasil, e o silêncio para a sobrevivência na clandestinidade é levado ao extremo.

A sessão e a mostra são finalizadas com o documentário João de Una Tem um Boi, de Pablo Monteiro (MA). Alinhavando diferentes cenas, personagens e espaços a partir da trilha sonora, o curta atualiza e endereça possibilidades cinematográficas relacionadas à filmagem do sagrado de religiões de matriz africana em filmes brasileiros. Nesse caminho, destaca-se a mobilização que faz da personagem Joseph Joan, vulgo Pai Joan, como um consciente e sagaz narrador das inexoráveis envolturas religiosas presentes nas festas de Bumba Meu Boi, no Maranhão, especificamente na celebração realizada pela entidade João de Una.

Camila Vieira
Leonardo Amaral
Lorenna Rocha
Mariana Queen Nwabasili
Pedro Guimarães
Curadores