QUE CINEMA É ESSE?

A cada edição o esforço da Mostra de Cinema de Tiradentes é o de mapear esse conjunto irregular e numeroso de filmes, práticas e ideias, conhecer e reconhecer obras dispersas e diferentes entre si e que, na maior parte dos casos, não viria a público de outro modo que não fosse em um festival. Isso não quer dizer que o festival se contente em exibir filmes com exclusividade e depois se conformar com o seu anonimato histórico, mas o fundamental em dar a ver um grande e diverso espectro de produção é trazer ao público uma multiplicidade de títulos e de cineastas que desejam existir (e ter condições de existir) para além do evento que os revela. Que cinema é esse?  

Na verdade, são vários os cinemas, de uma multiplicidade tão grande – e  tão desconhecida – quanto o Brasil. O fato é que existe uma produção numerosa e complexa e é preciso olhar para ela, não só como exercício de contemplação da beleza, do intrigante e da singularidade, mas se aplicando a um esforço de ver e discutir esses filmes, o que, do ponto de vista ético, é contrair responsabilidade pelo que se vê. Não é possível construir um novo audiovisual brasileiro ignorando as experiências que já existem, muitas vezes à margem das políticas públicas, e em muitos casos apartadas do mercado. E isso não quer dizer que a Mostra de Cinema de Tiradentes se faça à revelia dos gestos mais enérgicos de um cinema de mercado. Nada disso. A palavra “cinema” alude sempre a uma dinâmica povoada de filmes, muitos deles, de olhares, criadores e práticas diferentes, às vezes contrastantes entre si. O cinema não é O cinema, é sempre Os cinemas: preservar e restaurar filmes, fazer pesquisa e crítica, pensar os dilemas do mercado, se aplicar à formação, programar filmes, tudo isso é “fazer cinema”. Mas isso que chamamos de cinema só o é, quando ele parece repor a pergunta que o crítico André Bazin fez nos anos 1950 e que malandramente não respondeu: “O que é o cinema?.  Essas imagens e sons que chamamos de cinema podem ser muitas coisas, mas só quando sua força poética irrompe, é que essa técnica que é o cinema afere alguma dignidade às imagens produzidas pelo olho frio da câmera (frio, mas nunca indiferente). É preciso conceber que há uma complexidade nesse ecossistema (lembrando que o que destroi os sistemas é a monocultura), mas é fundamental fazer as distinções necessárias dentro dessa diversidade. Nem todos têm o mesmo tamanho e a mesma força. 

Tiradentes se notabilizou por programar nas suas mostras competitivas um cinema (cinemas) mais experimental, que aposta no processo e no imperativo da criação, que busca retomar o fio da modernidade do cinema brasileiro, menos como programa, e mais como gesto de liberdade necessária para que a realidade não mate por inanição aquilo que mantém vivo o desejo por um cinema de imagens que proponham uma nova imaginação. Mas pela Mostra de Tiradentes também passam vários outros cinemas, aquele mais ecumênico (de diálogo mais amplo com um público mais vasto), aquele mais local e comunitário, mas também aqueles outros que toda gente se pergunta “mas isso é cinema?”. É da indagação que se faz a inovação, na contramão de uma inovação vazia que nasceria de uma tecnologia a serviço da mera mercadoria circulante, do cinema como commodity de exportação. A indagação pode ser o princípio de uma inovação mais profunda, de uma prática que nos impulsiona para o novo. Hoje quando a Inteligência Artificial se apresenta como máquinas que estão se especializando em produzir o médio, reproduzir o já feito, o padrão, só humanos podem dar respostas diferentes à cenários diferentes – é nossa única chance

O ponto em que estamos hoje é o seguinte: é preciso que o cinema brasileiro se arrisque a fazer perguntas novas, se arrisque a sair do já conhecido, seja na criação dos filmes, na elaboração das políticas públicas e estruturais do setor, na eleição de nossas prioridades, na linguagem no debate público e no forjamento das novas ideias. Mesmo nesta 28ª Mostra de Tiradentes nos orientamos na direção de sair do conforto daquilo que já foi tentado e que deu certo. O momento pede por um redimensionamento das experiências, pede por perguntas novas e por deslocamentos que podem sugerir caminhos diferentes.A programação indaga os filmes e o público, os filmes e o público indagam a programação, o público indaga os filmes, os filmes indagam o público. O salto qualitativo do cinema brasileiro é se permitir caminhar por terrenos desconhecidos e arriscados. E esta não é uma proposição a partir de uma abstração poética ou conceitual, mas um movimento que sugere implicações práticas. Entre a expectativa e a realidade (o velho paradoxo do cinema brasileiro) é preciso encontrar uma dinâmica nova e novas palavras para um cinema que pende entre velhos constrangimentos históricos e a demanda do novo que emerge. Por isso é preciso repor uma pergunta tão antiga e tão nova para o cinema brasileiro: que cinema é esse?

Francis Vogner dos Reis
Coordenador Curatorial