A CONTRIBUIÇÃO MILIONÁRIA DOS PRIMEIROS ERROS
Em 2025 a Mostra Aurora chega a sua maioridade apresentando mudanças significativas. A primeira delas é que a Mostra passa a ser apreciada pelo Júri Jovem, composto por estudantes universitários selecionados após a participação na oficina “Análise de Estilos Cinematográficos”, realizada durante a 18ª CineBH, em 2024. Essa mudança reflete a intenção de aproximar a novíssima produção contemporânea de jovens ou estreantes cineastas aos espectadores do seu tempo. Mantendo a tradição de apresentar filmes que experimentam as possibilidades da linguagem e da narrativa cinematográfica, na segunda mudança desta edição, a Mostra reconfigura seu critério de seleção e passa a ser composta apenas por estreias de cineastas em longas-metragens. Essa alteração revela o desejo de dobrar a aposta, ir mais fundo ao encontro de trajetórias nascentes em filmes com mais de uma hora de duração.
Mais do que uma investida na “revelação” de cineastas com carreiras promissoras, algo que apontaria para um interesse de mercado, esse novo formato da Mostra expressa uma abertura ao “erro” como condição para a experimentação e a invenção. Dizer “erro” nesse contexto certamente não é dizer o contrário de um “acerto”, mas uma intenção voltada à errância, à deambulação, característica de muitos primeiros filmes. Como Odradek, herói do monumento de Guilherme de Almeida Prado, exibido na Mostra Temática deste ano, pequeno desconselheiro que ajuda a errar, a 18ª Mostra Aurora persegue os filmes que apontam para caminhos ainda não trilhados, que se inclinem para o desvio do que é útil ou funcional, que sejam um “erro” na engrenagem da máquina dos tempos atuais.
Desta forma, dizer “primeiro filme” sugere um momento de abertura para o abismo, em que tudo está para ser feito, e no qual a reestruturação do mundo se apresenta em todas as suas possibilidades. O avesso da ordem, tomando a ordem como a estrutura do mundo dado, a linguagem hegemônica. Como vaticinava Paul Valéry: “Se nós fossemos verdadeiramente revolucionários, ousaríamos tocar nas convenções da linguagem”. O discurso que parte de uma estrutura convencional, de um mundo dado, só pode expressar o que convém e reafirmar a própria estrutura que pretende contestar. A aposta da equipe de curadoria em obras que são alguma coisa nelas próprias, em vez de serem “sobre” algo, expressa esse desejo de “erro” da linguagem cinematográfica.
No cenário inaugural do “primeiro longa-metragem”, buscamos “novos erros” que possam somar na contribuição milionária de todos eles. Ainda nesse contexto, muitas vezes a própria ideia de erro pode ser vista como a interdição de uma obra e, consequentemente, de um cineasta. Quantos cineastas promissores do cinema brasileiro fizeram apenas um longa-metragem? Só puderam “errar” uma vez?
Nesse sentido, é importante considerar que a questão temática da Mostra de Tiradentes deste ano – “Que cinema é esse?”– naturalmente soa diferente, por exemplo, para um cineasta como Julio Bressane, que já acumula mais de 50 filmes, entre curtas e longas-metragens, para Caetano Gotardo, que chega ao seu quinto longa-metragem na Mostra Autorias deste ano, ou para os cineastas que compõem a 18ª Mostra Aurora. Os erros inaugurais são fecundos e, assim sendo, encaminham a trajetória de um realizador, podendo ser fundadores de um cinema.
Os filmes desta edição da Mostra Aurora expressam “erros” profícuos que nos fizeram percorrer os desvios das suas linguagens e narrativas. Vamos a eles.
A começar por Margeado, de Diego Zon, que com sua narrativa errante percorre as paisagens da catástrofe. O filme deambula com seu personagem, e ambos parecem não saber aonde querem chegar, mas chegam. Cruzando com personagens e situações acidentais, Margeado vai construindo seu caminho enquanto anda, à margem, atento às belezas de uma paisagem que teima em existir.
Kickflip, de Lucca Filipin, desloca para a linguagem cinematográfica as imagens que uma geração carrega no bolso ao lado do cigarro avulso amassado. Filipin estreia seus “erros” com uma narrativa doméstica e urbana que encara o fim do mundo com a pele arranhada pelos bytes e a urgência da performance anônima compartilhada. Uma adolescência retratada por uma imagem digital selvagem, apartada dos seus filtros de inteligência artificial.
Em Nem Deus É tão Justo Quanto seus Jeans, Sergio Silva vai fundo nas fantasias de um cotidiano prosaico. Embalados pelos sambas-canção, seus personagens fantasmagóricos se batem em uma terapia do absurdo, errando pelo apartamento etéreo, que parece prestes a desaparecer. A falação transborda o sentido, esgarçando a sua utilidade funcional: a comunicação.
Cartografia das Ondas, de Heloisa Machado, é uma matrioska errática. Com narrativas que se interpelam, parte do mar – a incompreensão absoluta – para tecer um ensaio sobre a fúria, o isolamento e o mistério da maternidade. A encenação do processo de criação vai dando luz às histórias de nascimento e morte, sendo interrompida até o final por personagens inventados e reais. Aos poucos, o absurdo da lógica infantil toma conta da história: “Boa noite para todo mundo do futuro”.
Um Minuto É uma Eternidade para Quem Está Sofrendo, de Fábio Rogério e Wesley Pereira de Castro, apresenta a angústia de um personagem desajustado que se debate entre a abstração e a materialidade do seu mundo. A fragmentação da montagem intensifica uma performance turbulenta em meio a livros, filmes e aplicativos de relacionamento. A instabilidade das imagens acompanha os dias que se repetem e nunca são os mesmos.
Em Resumo da Ópera, de Honório Félix e Breno de Lacerda, o fim e o início se fundem no espaço cênico do mundo. Assumindo a teatralidade na sua concepção: a encenação dos corpos no espaço, a narrativa percorre os gêneros teatrais, do teatro grego à performance. A cacofonia da linguagem faz esvair o sentido do texto epopeico. Na beira do abismo da modernidade, o cinema, arte moderna por excelência, se volta aos primórdios da arte narrativa, subvertendo a sua ordem em direção ao caos.
Francis Vogner dos Reis
Juliana Costa
Juliano Gomes
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