RIO MALDIÇÃO: SOBRE CONCEIÇÃO – AUTOR BOM É AUTOR MORTO E A MALDIÇÃO TROPICAL
O ano de 2007 foi o início do segundo mandato de Lula à frente da Presidência da República e o segundo de Aécio Neves na cadeira de governador de Minas Gerais. Naquele ano a economia teve um crescimento de 6,1% em relação ao ano anterior, a indústria crescera 5%, o consumo das famílias quase 7% e os investimentos aumentaram 13,5%. Aconteceram naquele ano alguns desastres (o buraco do metrô em São Paulo, trens se chocaram no subúrbio do Rio, e houve a queda do avião da TAM) e o Brasil foi escolhido para ser sede da Copa do Mundo no então longínquo ano de 2014.
Entre os filmes brasileiros, Tropa de Elite seria o mais visto nos cinemas (mais ou menos 2 milhões e meio de espectadores) e também o mais pirateado nos camelôs. No Festival de Brasília, 2007 seria o ano de Cleópatra, de Julio Bressane.
Retrospectivamente, esses números e fatos todos são possíveis de contabilizar e avaliar, porque o ano de 2007 acabou há 18 anos. Mas antes dos êxitos que marcaram 2007, em janeiro daquele ano Cleber Eduardo assumiu sua primeira curadoria de filmes de longa-metragem para a Mostra de Cinema de Tiradentes. Àquela altura, no cinema brasileiro a maior parte dos filmes considerados exibíveis nos festivais brasileiros era realizada pelos métodos mais oficiais daquele momento (leis de incentivo, editais, prêmios), a Mostra de Tiradentes tinha uma “mostra de vídeo” em paralelo às de curta-metragem em película, e a película ainda era o suporte de projeção possível, ao passo que longas realizados em digital precisavam fazer um transfer para 35mm para projeção nas telas.
Lendo a imprensa da época no pós-festival, nos chamou a atenção o estranhamento com alguns gestos dos novos filmes no festival, notadamente nos dito “filmes experimentais”; Luiz Zanin, de O Estado de São Paulo, como sempre, vanguarda em declarar o desconforto e uma sutil e libriana oposição frente ao desarranjo sem modos: “(…) pela tela do Cine-Tenda, na cidade histórica de Minas Gerais, passaram títulos, digamos, árduos como O Quadrado de Joana, de Tiago Mata Machado, O Céu Está Azul com Nuvens Vermelhas, de Dellani Lima, Conceição – Autor Bom É Autor Morto, direção coletiva de André Sampaio, Cynthia Sims, Daniel Caetano, Guilherme Sarmiento e Samantha Ribeiro; e Acidente, de Cao Guimarães e Pablo Lobato (…) Os seminários e debates, bem como a escolha dos filmes participantes, refletem a presença da nova curadoria de Tiradentes, a cargo de Cleber Eduardo e Eduardo Valente na área de cinema. São críticos da nova geração e procuraram imprimir ao festival suas concepções de cinema e vida, renovando com a programação de filmes alternativos e incrementando a presença dos críticos que se contam entre suas afinidades eletivas, em especial a geração surgida nos últimos anos em sites e revistas eletrônicas. São eles que dão as cartas hoje em Tiradentes” (30 jan. 2007).
Acontece que sobre aquele primeiro ano dessa “nova curadoria”, Cleber Eduardo disse em entrevistas e conversas pessoais, posteriormente, que dois filmes de longa-metragem particularmente lhe haviam chamado a atenção de forma decisiva: O Quadrado de Joana, de Tiago Mata Machado, feito com câmera digital a partir de um edital de curtas, e Conceição – Autor Bom É Autor Morto, de André Sampaio, Cynthia Sims, Daniel Caetano, Guilherme Sarmiento, Samantha Ribeiro, que formavam um coletivo de alunos da UFF que fizeram o filme nos anos 1990, mas que só conseguiram finalizar em 2006. Segundo o Cleber, os modos de produção desses dois filmes (expressão geracional e criação coletiva em Conceição e economia radical de linguagem em O Quadrado) e as reações a eles (entusiasmo popular com Conceição e o curto-circuito no público com O Quadrado) o inspiraram na edição seguinte a criar a Mostra Aurora.
Conceição – Autor Bom É Autor Morto reunia esse grupo de ex-formandos e ex-formandas do curso de Cinema da UFF, entre eles àquela altura André Sampaio seguia ainda fazendo filmes de curta-metragem e exercendo a montagem, Daniel Caetano também fazia filmes, mas de maneira mais sazonal.
O filme teve poucas exibições, mas conquistou já à época uma certa aura de filme de culto. Os poucos textos que existem falam sobre a certa modernidade urbana e cômica do cinema carioca que sumira dos filmes nos anos 2000. Tinha ali como atores Vera Barreto Leite, Rose Abdalah, Joana Medeiros, Djin Sganzerla, os próprios diretores, além de Jards Macalé como um assassino slasher. É como se olhássemos um tipo de energia – jovial, moderna, debochada, fragmentária, multiepisódica, cinematográfica – que desejávamos no cinema dos anos 2000, mas parecia já um objeto do museu das sensibilidades perdidas. Parecia uma peça mais fácil de encontrar no cinema jovem carioca dos anos 1970 e 1980. Mas, por outro lado, o temperamento jovem anos 1990 do filme (a falação frenética e a violência cômica que remete ao cinema indie norte-americano da época, os eventos da cidade do fim do século e etc.) revelam o traço geracional daquele momento que só teve paralelos na produção de curta-metragem do período. Era um filme sobre fazer filmes, ou melhor, sobre a impossibilidade de se fazer filmes. Um personagem invade o brainstorm dos diretores no bar para cobrar uma história, o professor João Luiz Vieira aparece numa ambulância ao fim dizendo que o filme não tem estilo e é uma grande confusão.
Hoje é possível olhar para Conceição e ver ali o entusiasmo e o azedo de se fazer filme no Brasil. Da época da película, com montagem analógica, custos de revelação, laboratório, cópia, tudo isso custava uma fábula. Só a geração seguinte passou a contar com as facilidades e delícias da edição não linear, da finalização digital e da gravação em câmeras baratas de definição interessante. Antes de ser um pioneiro desse cinema que aportaria em Tiradentes nos anos seguintes, ele foi um elo perdido desse cinema jovem contemporâneo que se fez à revelia das circunstâncias em um contexto que demandava profissionalismo industrial e de mercado, exigido pela ideologia da Retomada, filme jovem e coletivo, com tesão, preparação possível e improviso incontornável. Todo esse repertório seria muito comum à geração Aurora a partir de 2008.
Conceição – Autor Bom É Autor Morto obviamente não é uma ilha, pois fez parte de uma movimentação cultural no cinema da capital fluminense que nos deu a revista Contracampo, o Cineclube do Buraco, o Cachaça Cinema Clube, Cineclube Beco do Rato, a série de curtas Capitão Zum, o coletivo audiovisual Mate com Angu, a Cavideo… A diferença com a geração posterior, a geração Aurora, é que esta já estava sob uma outra esfera de influências, seja o cinema contemporâneo dos anos 2000 realizado em digital, sejam as práticas da videoarte (principalmente em Belo Horizonte e no Ceará – via Alexandre Veras e Alpendre), além, claro, do acesso à tecnologia nova e barata que fez toda a diferença, pois puderam se erigir sem o demasiado peso de uma realidade técnica mais hostil e inacessível na qual se fez Conceição.
O filme segue menos conhecido do que deveria, pois na época a repercussão se limitou a um circuito restrito. Cleber Eduardo escreveu em Cinética o seguinte comentário: “A adesão em diferentes medidas a Conceição nos sites e revistas eletrônicas, devem pensar alguns (ou muitos), teria como estopim o fato de um dos cinco diretores, Daniel Caetano, ser também crítico da Contracampo, a mais longeva revista eletrônica brasileira de reflexão e pesquisa de cinema. A maioria das resenhas e críticas disponibilizadas na internet é assinada por pessoas próximas, em diferentes medidas, do crítico/realizador. Pode-se imediatamente concluir, somando a com b, que tudo ficou no clubinho (…) Já os resenhistas, comentaristas e emissores de opiniões dos impressos parecem unânimes em ver o filme como um objeto alienígena sem lugar hoje no cinema ou ao menos no circuito de exibição. Um deixa claro em suas palavras que o filme não deveria existir (Miguel Barbieri Jr., no suplemento Veja São Paulo).
Dez anos depois, em 2017, A Maldição Tropical, de Luisa Marques e Darks Miranda, aporta na Mostra Foco, competitiva tradicional de curtas-metragens da Mostra de Cinema de Tiradentes. Em 2017 a Copa já tinha acontecido no Brasil havia três anos e Seleção tomou uma sacolada de 7 a 1 da Alemanha; a presidenta Dilma Roussef, herdeira do legado político de Lula (e antes do Brizola), tomara um golpe em um processo que tomou os dois anos anteriores consecutivos. A grita antes era “não vai ter Copa”, depois “não vai ter golpe”. Houve Copa e golpe. O presidente golpista tinha trejeitos de Drácula e o Brasil voltou a cultivar publicamente ideias e práticas autoritárias e violentas. Os militares voltaram à mídia e ao convívio comum com o executivo de Brasília. Era 1% de aumento do PIB no ano, era 1% de aumento no consumo das famílias. O horizonte generoso de 2007 se esgotara. Sentimento de fim de mundo, ruína. A Mostra de Tiradentes nesse momento já tinha outra feição: a intensidade dos debates ganhou contornos mais agressivos e eram inegociáveis os termos que agora rejeitavam parcialmente uma cultura fílmica legada de um ideário moderno do cinema em nome da exigência de novas epistemologias de corte decolonial, negra, indígena, feminista, LGBTQIA+. Em um momento de terra arrasada, era urgente construir outros referenciais. Maldição Tropical não vai necessariamente nessa toada, mas forja essa paisagem de ruína sci-fi. O que o filme de Luisa Marques e Darks Miranda constrói é o choque baseado no desajuste, tipicamente brasileiro, entre um projeto moderno tardio de linhas racionais e o uma imagem icônica de um Brasil generoso e tropical na figura de Carmen Miranda. A convivência estranha entre o projeto de um futuro adiado e a iconicidade de um Brasil idealizado, estabelece uma tensão anômala, pois uma coisa não anula a outra, elas convivem em síntese solar e mortuária. É um projeto irrealizado, irrealizável e do qual nos sobram imagens magníficas, quase alienígenas. A performance de Darks Miranda (o fantasma de Carmen Miranda) flanando pelo museu Carmen Miranda soa como uma versão mais onírica, menos brutal (talvez mais melancólica) e infinitamente mais melodiosa do fantasma carioca esvoaçante (“um pesadelo ao vivo”) de Copacabana mon Amour. Mas as semelhanças se esgotam numa analogia primeira. Enquanto o fantasma de Sganzerla se precipitava com desespero na materialidade dura dos calçadões de Copacabana (a iconicidade do espaço), o de Darks Miranda atravessa de maneira etérea imagens de arquivo e do presente dos espaços e da memorabilia do Museu Carmen Miranda (a iconicidade do signo). A Maldição Tropical, vista desde 2017 na Mostra Foco, trouxe a impressão amarga de que o Brasil é, e sob certo aspecto sempre foi, uma ruína do futuro. O filme não venceu a Mostra Foco daquele ano, mas se afixou na memória de quem viu e segue como um dos mais misteriosos objetos que passaram pela Foco.
Francis Vogner dos Reis
Juliana Costa
Juliano Gomes
Curadores