A ALEGRIA EXTASIADA DO DESLUMBRAMENTO

Não é incomum encontrar nos escritos de Haroldo de Campos a palavra “deslumbramento”. O deslumbramento é fascínio vertiginoso, mas também ofuscação e perda da clareza. O poeta, no prefácio de O voo dos anjos, livro de Jean-Claude Bernardet sobre o cinema de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, descreve “um cinema (do grego kinema, ou seja, “movimento”) capaz de provocar a epifania do olho, de flagrar o epos na transitoriedade da luz e, por isso mesmo, de deflagrar a descarga elétrica do riso descompressor e a alegria extasiada do deslumbramento” (Haroldo de Campos, maio 1990).

A Mostra Deslumbramento, mais uma novidade nesta 27ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, empresta o sentido profundo dessa palavra empenhada pelo poeta na designação do cinema como desencadeador de um gozo epifânico. Cinema como instrumento de invenção e transgressão poética. Por isso, os dois filmes que inauguram a Mostra Deslumbramento remontam a uma fascinação tão originária da imagem (que toma forma no século XIX) quanto em uma poesia insólita, sempre revelatória, portanto, extratemporal: O Leme do Destino, de Julio Bressane, e Bizarros Peixes das Fossas Abissais, de Marão.

Ambos os filmes, muito distintos, trazem consigo uma fascinação pela sua matéria: a animação de Marão extrai do obstinado exercício imaginativo um tipo bem particular de onirismo desde a confecção de um mundo que a cada momento inventa e reinventa suas próprias regras. Uma mulher, um animal e um fenômeno atmosférico (uma nuvem) são personagens em um oceano. O surrealismo enérgico e quase etéreo, a prosódia carioca, as personagens maravilhosamente encarnadas nas vozes de Natália Lage, Guilherme Briggs e Rodrigo Santoro compõem um mundo que é radicalmente único no cinema brasileiro. A frase “minha bunda é um gorila” dá a dimensão de uma poética de liberdade inaudita, indubitavelmente um marco na história do cinema de animação no Brasil.

Leme do Destino aposta em uma poesia que dá anima às coisas, paisagens e corpos como afrescos de história natural. Importa o que vemos, mas prevalece o enigma ou a evocação daquilo que não está tão visível, mas que os gestos e as palavras conseguem mover como lampejos de evidência. Como a pedra do Leme e os corpos apaixonados deflagram sua força revelatória? Bressane faz a aposta em um cinema vidente, a poesia por trás da linguagem, o cinema por trás do filme, como ele próprio disse. Os corpos quando se amam têm a beleza inconstante e transitória de uma paisagem intempestiva, uma paisagem natural forja os mitos das origens cósmica e histórica. Todos os atos de amor se põem eroticamente à nossa vista: o encontro de duas mulheres dá imagem ao amor e, como obra, o trabalho de várias mãos e olhos erigem o filme. O erotismo como uma estética do amor. A beleza da antinarração. Deslumbramento total, que contagia todo mundo material num erotismo amplo e irrestrito.

Francis Vogner dos Reis
Juliano Gomes
Tatiana Carvalho Costa
Curadores