QUEM VAI DOBRAR A APOSTA?

Em 2024, a Mostra Foco foi composta a partir de inúmeros desafios, entre os quais estava explícito um desejo muito latente de dar vazão ao choque entre as distintas realidades que se apresentavam em tela. Na seleção, cruzava-se um sem-fim de Brasis, do Sul ao Norte do país, trafegando por uma deriva de estéticas, articulações, materiais, memórias e abordagens cinematográficas. Tudo isso dizia respeito, enfim, a um contraste muito evidente de filmes, poéticas e visões de mundo que podem estar acolhidas em um projeto de país. Se vistas em separado, talvez elas não criassem tantas faíscas do que se postas lado a lado, enfrentando e respondendo uma à outra, a partir de um diagnóstico da produção curta-metragista brasileira, que está sempre apresentando ao espectador um algo a mais, um desvio outro, uma vontade de situar-se no mundo a partir das diferenças.

Se alguns filmes da Mostra Foco de 2024 causaram choques a partir do contrassenso, o que propomos neste ano, enquanto conjunto, é justamente a pergunta: quem vai dobrar essa aposta? Quais filmes vão mexer de fato nas estruturas narrativas e nas possibilidades técnicas e poéticas do curta-metragem? Quais filmes possuem a capacidade de nos constranger, deslocar e friccionar as visões de mundo já preestabelecidas pelo que se entende como o “bom cinema” ou o “cinema correto”? Em uma época em que nos perguntamos “que cinema é esse?”, para pensar a produção brasileira, nos parece claro que tentar um diagnóstico uno e objetivo – e, portanto, sem possibilidades de contradições – não é e nem nunca será um caminho.

O desejo, pelo contrário, é permanecer abraçado na contradição, com um pé no erro e no disforme, e o outro pé na invenção, naquilo que ainda pode ser gerado, não porque é necessariamente novo, mas porque se apresenta como fresco, arejado e sobretudo descompassado, estranho, imperfeito. Cativados por um olhar que resulta da mistura do centro com o interior, os filmes da Mostra Foco deste ano são um pequeno substrato daquilo que pode ser um cinema brasileiro para o futuro. Um cinema passível de fazer pensar, rasgar, debater. Um cinema que se afirma tanto nos rincões misteriosos deste Brasil, nos trazendo obras de cineastas ainda desconhecidos, de regiões com baixíssima produção cinematográfica, como também um cinema que busca refletir a continuidade de gestos poéticos de autorias em permanente reflexão e lapidação, fazendo pulsar um sentido permanente de invenção com a forma.

Em suma, o que está em jogo nas já habituais três sessões da Mostra Foco não são aqueles trabalhos que reafirmam as certezas, os lados certos ou os gestos facilmente codificáveis; o que nos parece estar em jogo é sim, e sobretudo, um cinema que resulta da prática política e poética de olhar para as contradições de um território querendo fixar-se perto delas, na altura de seus olhos, num embate mano a mano, correndo todos os seus riscos. Pois não se pode ousar pensar um cinema brasileiro sem que se ponha em campo os seus contrários, suas fissuras e seus desarranjos. É daí que ele nasce e é de onde pinçamos cada uma dessas escolhas, com aquilo que os filmes oferecem tanto de beleza quanto de fratura.

Poéticas e políticas, amor e morte, corpo e desejo

Abrindo a Foco 1, uma política do desejo cruza nosso caminho. De Piraju, interior de São Paulo, Gabriel Vieira de Mello nos traz o filme Não me Abandone, onde o amor e a paixão juvenil redobram as consequências do adolescente Rafa, que fora esquecido num passeio escolar. Com aposta total na mise en scène, o cineasta cria um mundo embalsamado pela ternura e pela solidão dos espaços já naturalmente vazios das cidades interioranas, descortinando, através de uma montagem de deslocamento espacial, um senso dramático ímpar a partir do encontro das criaturas com a noite.

Em seguida, Mayra Costa nos traz o curta-metragem Entre Corpos, de Alagoas, onde a ideia de desejo adquire outras potências. Marcada por traumas, a costureira Vânia enxerga no desejo carnal uma obsessão que alimenta seu cotidiano. Entre cerzir um tecido e cerzir um corpo, a personagem nos coloca diante de um universo intenso e mutilado, fractal, reconhecido em espaços mínimos, onde sexo e trabalho misturam-se abrupta e incessantemente.

Já no brasiliense Osmo, de Pablo Gonçalo, o desejo cria pacto com a morte, a partir dos escritos de Hilda Hilst. Galgado a partir de uma estranheza cênica ímpar, disposta entre montagem e mise-en-scène, o jogo dos atores Gustavo Jahn, Marília Santos e Rosanna Viegas celebra um mundo à parte. Mais além de uma adaptação literária, o filme incrusta na multiplicidade das vozes do narrador uma narrativa perturbadora, de época, composta por espelhos e vistas alternativas da realidade, em que amor resulta em morte e morte resulta em amor.

Por fim, a Foco 1 se encerra com Estrela Brava, filme de Jorge Polo, do Ceará, em que a equação do desejo nos carrega em direção total ao gore. Traçando um paralelo entre prosa e poesia, residual do filme anterior, Jorge Polo nos leva a pensar as corporeidades queer a partir de formas monstruosas, erguendo uma relação de desejo que se alimenta do plano e do contraplano, do visto e do não visto, onde o místico habita o terreno dos amantes em sua natureza fundamental.

Da experimentação formal às ausências cinematográficas

Para a sessão Foco 2, o experimentalismo das formas cinematográficas entra em campo, chamando atenção a trabalhos cuja estrutura dramática e narrativa se desfazem, oferecendo ao espectador uma brecha para a estranheza e para a conformação de novos objetos cinematográficos. Além disso, a imagem está em jogo, sua ausência toma forma, e os desdobramentos do ver e do não ver (ou mesmo do ver em excesso) chamam atenção. Em Ver Céu no Chão, coprodução entre Ceará e Rio de Janeiro, Isabel Veiga registra o período festivo-religioso do Ciclo dos Reis, que ocorre em Juazeiro do Norte, a partir do registro cotidiano das amigas Day, Samantha, Luzia e Jurema. Trata-se de um cinema de descoberta, mesclado entre uma série de poéticas que se apresentam em tela, desde o uso de uma linguagem videoclíptica até um astuto movimento de montagem para observar os não espaços e não lugares. Gera-se um efeito forte de opacidade, como também um retrato solene e, nem por isso, menos brutal de um cotidiano que se faz poético em meio às dificuldades.

Já no gaúcho Memórias Despejadas (Ou A Enchente Levou Tudo e Encontraram a Luta), da cineasta Juliana Koetz, o espaço para um registro vivo e urgente toma forma. Situado no contexto da tragédia climática que acometeu todo o estado do Rio Grande do Sul em maio de 2024, o filme é um retrato feroz da ocupação urbana em meio à subida das águas. Feito em conjunto com o MLB – Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas, a cineasta consegue capturar momentos em que, através de uma câmera instável, e de uma situação real de luta contra as forças policiais, a vida parece estar por um fio. Nesse contato corpo a corpo com o real, Memórias Despejadas nos oferece uma série de escuros, de momentos de energia capacitados pela impossibilidade de ver e detectar o que está em tela, acometido por um extracampo agudo que adensa e ambienta o confronto entre aqueles que buscam por segurança e aqueles que deveriam prezar por ela.

Em seguida, Trabalho de Amor Perdido, filme carioca de Vinícius Romero, dá conta de adensar ainda mais a trama imagética. Com reconhecida trajetória no campo dos filmes experimentais, a já larga produção de Vinícius chega em Tiradentes com uma obra cuja tessitura se estrutura, tal qual o filme anterior, na ideia da negação: há uma série de imagens, em variadas frequências, mas o som não está entre elas. Com seus mais de dez minutos de projeção, Vinicius articula paisagens, natureza, dia e noite a partir de uma camada de sobreposições cinematográficas que incorporam um clima melancólico e apaixonado. Diante de uma produção brasileira que muitas vezes flerta com o hibridismo ou com o experimento das formas, o filme vem para catapultar esses elementos e caminhar a passos largos a um contexto de experimentação mais fundamental e basilar, arejando em sua mesa de montagem as conexões possíveis que a imagem e seu fluxo tardio podem nos oferecer.

Ao final da Foco 2, Tamagochi_Balé, de Anna Costa e Silva, do Rio de Janeiro, leva aos limites as reflexões em torno do corpo, do amor e da imagem. Em um trabalho arguto de colagens, a partir de uma série de imagens de arquivo e fabulações e incrustações digitais, a cineasta nos questiona sobre a possibilidade do amor e do contato com o outro nos tempos cibernéticos. Afiando a faca para falar de um neoliberalismo digital, que promove o fim do erótico, e por sua vez também o fim do desejo, Tamagochi_Balé articula-se nas entranhas deste capitalismo cibernético para não só desbravá-lo, como tentar confrontá-lo de vez, levando as imagens, seus estatutos e suas condições de lapidação a um limite extremo, a partir da profusão de experiências temporais e sensoriais oferecidas ao espectador.

Entre o luto e a luta, os territórios

A última sessão da Mostra Foco traz de volta a Tiradentes velhos conhecidos, como também reúne um corpo de cineastas cujos filmes chegam à nossa competitiva pela primeira vez. Cada qual a seu modo, esses trabalhos estão versando sobre inúmeras formas de se conviver em um território; sobre territórios amaldiçoados pelas doenças ou pelo mal invisível; sobre territórios de constante luta e destruição; sobre territórios a serem conquistados ou fabulados pelo outro; sobre territórios inventados ou imaginados para o futuro.

O primeiro curta-metragem da sessão é de São Paulo, dirigido por Carlos Adriano, que, em Sem título #9 – Todas as Flores da Falta, segue arriscando novos rumos para a sua cinepoética, dessa vez voltado a comentar as relações que perpassam o objeto da flor. Entre a possibilidade de um novo começo e a imagem que fica quando alguém parte, a flor é o catalisador para que o cineasta busque nas imagens do cinema e nas páginas da poesia um recorte possível para falar sobre a ideia de permanência, e sobre o gesto tão bruto e tão belo que há entre a vida e a morte. Com papel central no trabalho, a disputa de territórios na Palestina também entra como campo de força, em um dos principais momentos do filme, abrindo uma deixa para pensarmos tanto na matéria das imagens como em suas texturas e superfícies, suas durações e possibilidades, e o que fazer quando as imagens morrem ou registram com tanta abrangência o ato de matar.

Na sequência, temos Heyari: Espalhar Fumaça para Fazer Adoecer Colocando Feitiço no Fogo, com direção de Daniel Velasco Leão, uma produção de Santa Catarina que se passa quase integralmente em um conjunto habitacional. Na trama do filme, os moradores estão todos, um a um, morrendo misteriosamente, e a única espécie de salvação reside em deixar para trás os laços e lares construídos para salvar-se da morte. Com uma estranheza característica, aliada ao preto e branco que conforma a imagem do filme, Daniel Velasco Leão constrói uma narrativa em que os personagens centrais soam como signos a serem desconstruídos e colocados em xeque, fazendo um caldeirão de referências que abarcam todo um contexto brasileiro que vai das tragédias climáticas às epidemias recentes, traçando nele uma incomum capacidade de, a partir dos excessos, atrair momentos de dúvida, incerteza e estranheza que parecem tomar conta do filme.

O filme mineiro Jamais Visto, dirigido por Natália Reis, também se concentra em colocar a cidade em xeque, em uma mistura de ficção científica com filme experimental de arquivos. Com uso astuto dos arquivos, a cineasta revela, em pouquíssimo tempo de projeção, uma espécie de narrativa especulativa a partir de fotografias de Juiz de Fora, capazes de suscitar uma perseverante paranoia ao redor do fim do mundo, das condições climáticas e dos conflitos nucleares. É uma espécie de imaginação acerca do território, fantasiada em uma camada mais simples para pouco a pouco revelar um corpo bastante complexo e imaginativo sobre as possibilidades de impressão e interpretação de um espaço.

Ao falar de espaço, temos na sequência o filme baiano O Mediador, de Marcus Curvelo, que abrange essa temática a partir de uma abordagem política composta por doses cavalares de ironia. Colocando-se no centro do debate político entre esquerda e direita, bolsonaristas golpistas e defensores do MTST, cristalizados em signos muito comuns como a bandeira do Brasil e o boné vermelho do Movimento Sem Terra, Curvelo se coloca em cena como um possível “mediador de conflitos”, envolto em vestes totalmente brancas que nos trazem à memória a ideia de uma múmia. Ao seu modo característico de imbricar o chiste e o humor à linguagem cinematográfica, o cineasta produz um trabalho galgado na contradição desses dois polos extremamente distintos, onde cada articulação e movimento que, aparentemente, prezaria por uma ideia de neutralidade, na verdade funciona como um disparador para colocar ainda mais fundo os dedos em cada uma dessas feridas.

Finalmente, encerrando a Mostra Foco, temos um curta-metragem feito em Assis, município do interior de São Paulo, dirigido por Guilherme Peraro. Marmita é o representante de uma cena local em efervescência curta-metragista, e traz a história de três homens em conflito. Lourenço e Cícero são trabalhadores da construção civil, que sozinhos batalham no sol a pino para construir uma casa. Quando o menino Manchinha passa a confrontá-los por um prato de comida, as coisas descambam para ganharem contornos dramáticos imprevisíveis. Com atenção especial à relação entre tempo e espaço, entre a decupagem de uma obra em construção e o rosto desses homens incrustados no serviço, Marmita simboliza um caminho alternativo ao curta-metragem brasileiro, ao fazer da imaginação e da fabulação a partir do invisível a matéria-prima para dar conta de um contexto do criminalidade e violência que acomete esses sujeitos.

Camila Vieira
Leonardo Amaral
Lorenna Rocha
Mariana Queen Nwabasili
Rubens Fabricio Anzolin
Curadores