AS FORMAS PLURAIS DE UM CINEMA EM FORMAÇÃO

Em 24 abr. 2007, através do Decreto 6.096, foi instituído pelo Governo Federal o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), ainda no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. No bojo de sua criação, o programa apresenta ações do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), do Ministério da Educação (MEC), lançado no mesmo período. O objetivo era duplicar a oferta de vagas no ensino superior no Brasil. A última etapa de conclusão do programa se deu em 2012, já no governo de Dilma Rousseff.

Na esteira das aplicações do Reuni, muitos cursos de cinema foram criados ou desenvolvidos no Brasil. A reboque dessas alterações, também surgiram ou cresceram cursos em universidades ou faculdades particulares, bem como de escolas livres e oficinas em todo o país. Outrora um curso universitário de pouco acesso, o cinema passou a oferecer mais acessos e uma diversidade de produções. Aliada a esse cenário, há uma hipótese plausível de que a distribuição de um conjunto de programas de auxílio à cultura, como a Lei Aldir Blanc e Lei Paulo Gustavo, propiciou uma maior produção, vide o alcance de alguns estudantes a esse tipo de financiamento.

Acreditamos que esses contextos histórico e contemporâneo podem ser percebidos, em alguma medida e em seu recorte específico e direcionado, na Formação da Mostra de Cinema de Tiradentes 2025. Pela primeira vez no festival, essa Mostra passa a ser competitiva, o que valoriza ainda mais essas produções surgidas ao longo desse último ano. Podemos perceber uma diversidade de gênero, racial e regional nos filmes que compõem a Mostra Formação da próxima edição.

Na sessão da Formação 1 há uma proposição de que os filmes se entrelaçam, em alguma medida, por questões ligadas à procura, envolvidas por algum tipo de passado ou mistério. Em KM 100, de Lucas Ribeiro, realizado na Faap, em São Paulo, o personagem principal, um homem negro, se embrenha pela estrada em busca de um passado ancestral em uma ficção muito bem construída em sua decupagem e ritmo de montagem. Enquanto isso, em O Medo Tá Foda, animação feita por Esaú Pereira na Vila das Artes, em Fortaleza, há um investimento forte visual e sonoro na construção de um universo distópico a partir de traços desenvolvidos com uma materialidade diversa. Já em Película, de Brenda Barbosa e Sofia Leão, produzido na UFRJ, no Rio de Janeiro, há um exercício forte de montagem a partir de imagens garimpadas na Feira da Glória, na capital fluminense. O curta que fecha essa sessão é Mistérios de Nixipae, filme oriundo da Formação audiovisual na TI Katukina-Kaxinawá, realizado por NatoRê e Mawa Pey Huni Kuî, na Terra Indígena Katukina-Kaxinawá, em Feijó, no Acre, que resgata o surgimento da bebida nixipae e sua relação com a cosmovisão dos Huni Kuî, em uma obra que lança mão de recursos do documentário e de uma decupagem próxima à ficção.

Na Formação 2, há uma perspectiva de brincadeira com a linguagem do cinema e as plasticidades da imagem que conferem os contornos para essa sessão. Em Descontruindo Lene, feito por Guilherme Maia, na UFRB, em Santo Amaro, Bahia, há uma expressão de iconoclastia forte a partir da desconstrução da linguagem do cinema partindo de leituras anticapitalistas de pensadoras negras e do jogo de representação da personagem Lene, uma anciã negra do interior do país. O segundo filme da sessão é Do Lado de Dentro, dirigido por Marina Hilbert, na Unifor, Fortaleza, que oferece uma construção de tempo e espaço que remete diretamente a situações de confinamento e silêncio que desafiam o espectador após os anos de isolamento compulsório da pandemia. Sombras de Macumba na Luz da Memória, feito por Felipe Santana de Medeiros (Mysteryo), realizado no contexto da UFF, mas em São João de Meriti, Rio de Janeiro, constrói-se a partir de recortes de jornais do início do século passado que relatam a criminalização e o preconceito com os terreiros de macumba do Rio de Janeiro, intercalados com o transe de um ritual que se compõe fortemente a partir da sonoridade do filme. Por fim, em Viagem no Tempo, de Pedro Bournoukian, da UFPel, de Pelotas, Rio Grande do Sul, há um jogo entre o campo e o fora de campo a partir da ausência paterna e a insistência formal em uma imagem recorrente de um jogo de futebol como o ponto desse encontro.

Finalmente, na Formação 3, há um atravessamento da relação entre personagens com quebras de paradigmas culturais e cinematográficos com exercícios de forma e dramaturgia a partir do estranhamento e do antirrealismo. A sessão tem início com Sirius Não É Tão Longe, de Nick Sanches, da UFC, Fortaleza, que trabalha numa narrativa mais naturalista dentro de um espaço restrito do apartamento, investindo sobretudo na presença das personagens do filme. Já Poesia no Vinho dos Seus Lábios, de Matheus Monteiro, é uma animação da Vila das Artes, também em Fortaleza, que investe em uma forma que quebra tabus da relação homoafetiva entre árabes. O terceiro curta que compõe a sessão, Açúcar, realizado em uma oficina de produção de cinema em Joinville, Santa Catarina, estrutura-se no rompimento de uma dramaturgia mais naturalista, investindo em cortes e durações que causam situações de estranhamento na narrativa. Outro filme que faz parte desta sessão e rompe com formas para possibilitar a expressão dos corpos é Animais Noturnos, do Laboratório de Cinema Expandido, no Rio de Janeiro, dirigido por Indigo Braga e Paulo Abrão, e que trabalha na chave do humor e da estranheza pela presença em escala desproporcional entre personagem e espaço cênico. Ao final, Peixes Elétricos, da Unespar, de Curitiba, dirigido por Pedro H. Machado, investe na construção de uma ambiência citadina nonsense, descortinada pela deambulação do personagem em seus encontros com essas “criaturas da noite” elaboradas dentro do filme.

Camila Vieira
Leonardo Amaral
Lorenna Rocha
Mariana Queen Nwabasili
Rubens Fabricio Anzolin

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