QUE CINEMA É ESSE? O VISTO, O NÃO VISTO E O IMPREVISTO E A DESORGANIZAÇÃO DO MUNDO

A Mostra Temática que responde de maneira mais incisiva ao debate central da temática do evento não é obrigatória nas nossas programações, e em alguns anos – como, por exemplo, ano passado – ela não foi feita, pois consideramos que a temática estava presente nos filmes das outras seções do festival, incluindo as mostras competitivas. Como princípio de programação, essa Mostra só tomará parte da programação do ano quando ela realmente representar uma escolha curatorial aguda, cortante. 

Neste ano dois filmes fazem parte da Mostra Temática “Que cinema é esse?”: Relâmpagos de Críticas, Murmúrios de Metafísicas, de Julio Bressane e Rodrigo Lima, no primeiro fim de semana do festival, e Odradek, de Guilherme de Almeida Prado, no segundo e último fim de semana. Indo direto ao ponto: ambos os filmes desafiam nossa percepção em dois aspectos que descreveremos aqui em forma de perguntas: quantas imagens podem existir em um plano? O quanto o princípio de organização de uma montagem tem como destino poético a desorganização, a fim de criar ou encontrar algo que não está dado, seja no texto do filme, seja na própria materialidade das coisas que filma ou e na nossa percepção?

Ambos os filmes são as contribuições altas, sofisticadas, incisivas e inegociáveis que encontramos no ano. Em uma época em que se discutem, se praticam e se demandam objetos audiovisuais pensados a partir de uma economia de tempo que facilite a produção serial (e industrial) de padrões e que trabalhe, junto ao espectador, com o imperativo da eficiência cognitiva que dispensa a concentração da atenção, esses dois filmes, não só por suas durações (duas hora e meia no filme de Lima e Bressane, quatro horas e meia no de Almeida Prado), mas principalmente pelo caráter de seus trabalhos de concepção do tempo na relação, na duração e na intervenção nas imagens, são peças únicas e cabe a nós olharmos atentamente para elas, ainda mais em um momento em que é notório que o financiamento de cinema no Brasil leva ao ostracismo a experimentação como caminho de soberania imaginativa.

Relâmpagos de Críticas, Murmúrios de Metafísicas, filme de montagem de Rodrigo Lima e Julio Bressane, reúne imagens de 48 filmes brasileiros realizados entre o início do século XX e 2022. Poderíamos dizer, como uma sinopse o disse, que seriam filmes feitos desde 1898, data da tomada de vista da Baía de Guanabara pelos irmãos Segretto no convés do Paquette Brésil, vindos de Paris. Porém, esses planos não existem materialmente, o que levaria um historiador mais ortodoxo a reclamar que essa origem é um “engodo mítico”. No entanto, essa imagem da câmera oscilante e em movimento (traveling), desde o movimento das ondas no barco filmando o mar e a terra, está presente no filme, evidente em muitas outras imagens. O cinema na França havia sido criado com a câmera estável e no tripé (técnica regular, alguma precisão e o equilíbrio possível na composição e na captura de luz), mas no Brasil a mesma câmera foi cortejada com um comportamento oposto e instável, para alguns gostos, equivocado, errado, brutal, bestial, mal feito, errado. E daí vem a intuição e a investigação que parece orientar a criação da dupla, pois deslocam várias imagens de seus corpos (filmes) de origem e estabelecem novas e inauditas relações e ritmos, encontrando nelas relações ou distinções não previstas e nos dando a ver entre elas (e através delas) os “fios de nossa tradição experimental”, como diz o texto de Bressane,  “O experimental o cinema nacional” (de 1993, republicado neste catálogo), que foi a centelha de origem do projeto de Lima & Bressane.  O filme está para o cinema brasileiro como Histoire(s) du Cinéma, de Godard, está para a  tradição de metrópole. Em ambos, a construção histórica se dá na relação entre “fragmentos de mundos distintos”, na descontinuidade, na possibilidade de que uma criação histórica – de uma visão de história – se afirme pela poesia flagrantemente bela e inconformada.

Relâmpagos de Críticas, Murmúrios de Metafísica é ao mesmo tempo poesia e choque imaginativo entre mito e história, e traça uma história do cinema brasileiro a partir do imperativo da invenção experimental – intencional ou circunstancial, estético e técnico – que atravessa filmes tão díspares quando o vanguardista Limite, o aventuresco industrial O Cangaceiro, o burlesco experimental Aviso aos Navegantes, o brutal Esta Noite Encarnarei em teu Cadáver, além dos fragmentos do incompleto Carnaval na Lama, até imagens pessoais em digital captadas em viagem durante a pandemia. É um obra incontornável para o cinema brasileiro hoje e sempre. É o olhar (e o debate) que interessa. 

Se já falamos aqui em “deslocamento de imagens de seus corpos originais”, pensemos em Odradek como um deslocamento em sentido inverso da lógica original das fábulas, onde tudo teria um fim moral. Inspirado no conto de Kafka, “Tribulação de um pai de família”, Guilherme de Almeida Prado concebeu uma das experiências mais desconcertantes do cinema brasileiro contemporâneo, pois ele corre na contramão da perfectibilidade que o audiovisual contemporâneo ilustra com veemência na lógica célere do produto (organizado, pronto, limpo e classificável). A começar porque o personagem título da fábula, Odradek, é um não ser. É uma espécie de carretel na forma de uma estrela, mas que não tem função ou finalidade. A presença dele ali no casarão neoclássico chefiado pelo “pai” tirano, interpretado por Oscar Magrini com um figurino algo militar, em companhia da mãe silenciosa, da filha que volta da Europa e do filho angustiado. Ouve-se uma guerra no extracampo, explosões se veem por cima dos telhados. Assim, o discurso dos personagens, os espaços vastos e kitsch em que vivem, o tempo que experimentam só aparecem em seu caráter efêmero ou fugidio. Nos depoimentos dos atores, nas cenas, assim como na própria natureza digital e volátil da imagem, só há pura indeterminação. Que tipo de fábula é essa? 

Almeida Prado é da classe dos cineastas (De Palma, Carax, Ophuls) que tem gosto pelo artifício, pela cenografia, possui uma relação mais estética do que figurativa com figurino, cultiva uma obsessão com a iconocidade da arquetipia masculina e feminina do cinema, é sofisticado e maneirista, e coloca à prova em toda essa maquinaria técnica e simbólica uma experimentação de espaço e tempo, menos com o desejo científico de alcançar precisão técnica e muito mais como possibilidade de entender a “falha na imagem”, a fragilidade da aparência, o caos que irrompe ante o controle da imagem-cinema. Em tcheco uma palavra próxima de odradek seria odraditi, “o que induz ao erro”. 

Haroldo de Campos, em “Kafka: um realismo da linguagem”, escreveu sobre Odradek de Kafka, mas que nos serve aqui como vetor de reflexão sobre os filmes de Rodrigo Lima, Julio Bressane e Guilherme de Almeida Prado, e de quebra nos oferece a síntese sobre o cinema que nossa temática “Que cinema é esse?” defende:

“Odradek, em sua feliz existência sem sentido útil, desaconselha os mares calmos e decadentes daquele que ama a segurança das significações, sintoma de conformismo e fraqueza moral; ele, como mau conselheiro, ajuda a errar, ou seja, a começar uma errância, um caminho ainda não trilhado.”

Francis Vogner dos Reis
Juliana Costa
Juliano Gomes

Curadores