ALMA COLETIVA
Uma característica da Mostra Tiradentes que o tempo histórico fez o trabalho de elucidar ainda mais é a de promover o cinema como um ritual essencialmente ligado à coletividade. Em todos os espaços do evento, o que temos são dezenas, centenas de pessoas, em situações de convivência, junto, ao lado dos filmes de quem os faz, de quem os assiste. Na pandemia, o mundo percebeu com nitidez que a força dessa arte e sua pregnância tem a ver não só com o poder de sua linguagem, mas com os rituais sociais que os filmes engendram: o deslocamento, o pós-sessão, o pré-sessão, são os lugares que os afetos que formam a experiência com os filmes acontece. Justamente essa é a razão afinal de existirem festivais: a aposta na experiência coletiva, diversa, como motor de continuação do que chamamos história do cinema. Desses encontros que formam nossas experiências com os filmes, que começam antes da projeção e terminam bem depois, o fenômeno coletivo do cinema e se dá e daí se produzem novos filmes, novos encontros, novos saberes, e tudo mais que constitui o ecossistema que um evento como esse busca retroalimentar.
As exibições da Mostra Praça, dentro da nossa programação, são um dos pontos de culminância desse aspecto de elucidação do caráter coletivo. As centenas de pessoas que se juntam em praça pública para acompanhar as exibições estão ao mesmo tempo interagindo e experimentando o espaço da cidade, seu contexto imediato – às vezes envolvidos em outras atividades simultaneamente. Da nossa parte, como equipe que programa o conjunto de filmes a serem vividos nesses espaços, interessa refletir e trabalhar com as ideias de coletividade que aparecem nos filmes, de diferentes formas.
Mesmo o filme que mais tende a um recorte individualizante, Milton Bituca Nascimento (Flávia Morais), ressalta uma enorme rede de pessoas que o trabalho de Milton engendra. Meio carioca, muito mineiro, materializou como ninguém uma impressão de um espaço, de uma história e, acima de tudo, soube se construir como coletividade. O mítico Clube da Esquina é um grupo aberto, que conta com dezenas de pessoas cuja lista é incerta. No momento de auge da carreira, o artista decide prescindir de uma reafirmação de seu caráter individual de estrela, e se afirma como grupo. E o time entrevistado no documentário não para de reforçar como que as influências mútuas foram criando essa teia singular que forma o trabalho de Milton Nascimento, sintetizado aqui ao redor do acontecimento de uma grande turnê recente.
Alma Negra – Do Quilombo Ao Baile (Flavio Frederico) e 3 Obás de Xangô (Sérgio Machado) são filmes literalmente sobre processos de transmissão cultural. Sobre como movimentos vão se aglutinando, se construindo na história, se materializando em obras e feitos, e como que a força de qualquer cultura diz respeito ao seu potencial de constituição de um patrimônio comum, que é ativado por vários artistas que o renovam o revisitando. Tanto a cultura do Candomblé baiano quanto o movimento soul dos anos 70 no Brasil são exemplos de acontecimentos culturais que desafiam o status quo, cuja força reside em seu potencial de inovação e conservação. Dorival Caymmi e Jorge Amado são inventores. Antes deles, o que eles vieram a fazer não estava sintetizado. Eles pegaram o ambiente histórico em que viviam e sintetizaram tradições com as quais tiveram contato. E o espaço religioso – em geral visto como espaço somente de conservação – se interessou e acolheu esses “modernos”. Nas décadas posteriores, o soul, acusado de ser um processo de importação cultural acrítica, se tornou um importantíssimo espaço agregador, tanto de criação musical, quanto de sociabilidade, que semeou grande parte das matrizes do que mais se consome em matéria de música popular em todo o país. Trata-se de uma modernidade popular, coletiva, técnica e esteticamente inventiva, que reinterpreta seu tempo histórico e produz uma enorme energia de bem-estar e catarse coletiva. A maneira como o filme de Flávio Frederico organiza seus arquivos é precisa em termos de dispor as memórias e expor as ligações que a formam e dela emanam.
O épico Malês, filme que Antônio Pitanga busca produzir há mais de uma década, também se concentra em processos culturais que se dão pelo encontro, pela copresença, sociabilidade e pela transmissão coletiva. Ao trazer à tona um dos principais levantes de escravizados na história do nosso continente, Pitanga desenha uma fábula política cuja narrativa ressalta justamente a importância da tática, da estratégia, e da organização política das diferenças em nome de uma conquista comum. A matemática da ação em conjunto se dá por uma proporção que excede muito as somas das partes.
Assim, Luciano Vidigal renova a tradição da crônica carioca – que vem pelo menos dos anos 40 e 50, com Alinor Azevedo, Grande Otelo, Moacir Fenelon e Nelson Pereira dos Santos – ao materializar esse lírico painel de relações humanas que fogem dos clichês correntes de situações narradas em favelas do Rio de Janeiro, ao dar a elas riqueza geográfica, moral e dramatúrgica. Na forma da crônica, nem tudo é resolvido, os acontecimentos têm existência autônoma e cada parte é como que uma pequena estrela em uma constelação em movimento constante. O filme cola os personagens ao espaço em seus planos, que tendem ao aberto justamente para firmar essa dinâmica em que um reflete o outro. A arquitetura cheia de aberturas, esquinas, muros puláveis materializa justamente um ambiente onde as situações são um pouco de todos, diferentemente. O mote que atravessa todo filme é o da partilha, da convivência. Marcando, em mais de um nível, como a experiência do cinema tem a ver justo com esse pertencimento de muitas pessoas a uma mesma frequência, a um mesmo espaço-tempo. E num ambiente histórico hiperindividualista, o que esses filmes narram, e o que a experiência de fruí-los traz, é a evidência da força política dessa alma coletiva que multiplica nossos afetos e força e que nos mantém juntos, pelo doce prazer do pertencimento fértil e fugaz .
Francis Vogner dos Reis
Juliana Costa
Juliano Gomes
Curadores