OLHAR PARA O INVISÍVEL
A MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES, DO LADO DOS PROGRAMADORES

A Mostra de Cinema de Tiradentes já estava em sua décima edição quando uma mudança na equipe de curadoria veio acompanhada de uma mudança na proposta de programação dos filmes e na identidade do evento. Em vez de contemplar a grande diversidade do cinema brasileiro contemporâneo, como foi realizado na mostra entre 1998 e 2006 tanto em suas vertentes mais autorais quanto em seus segmentos mais comerciais, a mostra passou a focar de 2007 a 2025 em um universo cinematográfico sempre novo e peculiar, que também prima por uma variedade de temas e estilos, mas com um recorte mais circunscrito: o cinema brasileiro de baixíssimo orçamento e de alguma inquietação formal, prioritariamente de novos realizadores e realizadoras. Neste momento, no fim da primeira década do século XXI, se transitava, progressivamente, dos processos analógicos e materiais para os processos digitais de captação e finalização. As próprias exibições tiveram de se moldar aos novos tempos e aderir aos projetores digitais primitivos e precários, o que manteve, por poucos anos seguintes, a separação entre curtas em 35mm e curtas realizados em vídeo. Essa separação foi abolida quando as projeções digitais ganharam em qualidade.

De uma mostra simpática, realizada em uma provinciana cidade no interior de Minas Gerais, com aproximadamente 7 mil moradores, de arquitetura colonial e cercada de montanhas, Tiradentes se tornou, nos anos seguintes, um ponto de convergência formal, intelectual e humana do novo cinema brasileiro independente, multiplicando por cinco sua população residente durante o evento. No início, a novidade gerou grande estranhamento no público e na crítica mais tradicional. Filmes muito diferentes do que se estava habituado, mesmo no segmento mais autoral e internacionalizado, como os filmes de Walter Salles, Karim Aïnouz, Marcelo Gomes e Laís Bodanzky. Talvez os novos filmes de novos diretores e diretoras estivessem mais aproximados dos veteranos da autoralidade, identificados com o cinema moderno brasileiro, cujos emblemas eram Julio Bressane, Carlos Reichenbach, Paulo César Saraceni, Ruy Guerra, Walter Lima Jr, que também tinham seus filmes programados na Mostra em meio à chegada constante dos novos valores, ideias e formas. Foi necessário ter muita paciência, insistência e resistência para manter uma linha curatorial que a princípio contrastava com o cinema autoral mais conhecido, de algum prestígio e valores de produção “respeitáveis”, e, sobretudo, confrontava as expectativa do público, que reagia com intensidade – de amor ou ódio – às sessões.

Era preciso provocar e estimular os olhares de um novo e jovem público para a Mostra e dar espaço para uma nova crítica de cinema, praticada principalmente em revistas na Internet, também mais jovem e mais inquieta em suas defesas, mais drástica nas suas recusas e mais exigente no debate. E assim foi feito. Nestes 18 anos, surgiram novos cineastas (Adirley Queirós, Juliana Antunes, Affonso Uchôa, Lincoln Péricles, a produtora/coletivo Alumbramento, André Novais de Oliveira, Tiago Mata Machado, TavinhoTeixeira (não exatamente da mesma geração etária)). Individualidades criadoras de diferentes partes do país, retirando de Rio de Janeiro e de São Paulo a hegemonia da produção autoral e redirecionando para o Centro Oeste, para Minas Gerais, para o Ceará e para a Paraíba a energia renovadora de uma nova imaginação. Os antigos jovens amadureceram, novos jovens surgiram, Reichenbach e Saraceni morreram, Bressane permanece, o neoformalismo dos primeiros anos visto na Mostra de Tiradentes ganhou contornos mais políticos nos anos seguintes, as circunstâncias políticas e culturais do Brasil mudaram, mas a Mostra de Tiradentes não perdeu jamais o interesse inegociável de valorização de um cinema semi invisível, irregular, de poesia bruta ou pueril, que exigiu esforços intelectuais de uma crítica menos preguiçosa que a “oficial” e menos viciada em apenas listar adjetivos qualificadores ou desabonadores. Era preciso para esta crítica entender, especular, ter incertezas, deixar que os filmes a interrogassem e permitir, nos casos mais radicais, que os mistérios permanecessem como mistérios. 

 Hoje, em 2025, o desafio segue sob outras circunstâncias. A Internet ampliou seu poder de fazer circular imagens ao mesmo tempo que sua oferta parece cada vez mais restritiva pela lógica algorítmica. O mercado de salas do circuito tradicional de cinema reduziu drasticamente seu público, os festivais não conseguem fazer circular muitos filmes que estreiam, sobretudo no Brasil. Há muitos filmes, mas a maioria segue invisível. Por outro lado, muitos lugares do Brasil que nas décadas passadas não produziam filmes, apresentam obras com um frescor inaudito, como é o caso do filme vencedor da Mostra Aurora em 2025 (Um minuto é uma eternidade para quem está sofrendo, de Fábio Rogério e Wesley Pereira de Castro) e o estranho e fascinante filme mortuário de estreia de Lucca Filippin que exibimos aqui no Regard Satellites (Kickflip). Não por acaso, ambos os filmes de fatura artesanal e total radicalidade performática, coisas raras no cinema atual.

Esse “olhar para o invisível” ao qual nos referimos no título deste editorial, que diz respeito ao nosso perene exercício de programação na Mostra de Tiradentes, não é um olhar para aquilo que está fora da realidade sensível, não é mirar o inefável, mas sim lançar o olhar para um cinema que não possui visibilidade no mercado contemporâneo. Seja porque não responde aos critérios desse mesmo mercado, seja porque se revelam objetos estranhos e não identificáveis; seja porque sua poesia bruta, muitas vezes pobre, soe demasiadamente precária, violenta ou pitoresca para algumas concepções demasiadamente restritivas de cinema. Olhar para o invisível também, e de maneira bem consequente, é olhar para aquelas obras fora do circuito legitimado do cinema, fora das metrópoles como o eixo SP-Rio, que vêem o cinema como uma mercadoria apresentável para o gosto médio. É um olhar para filmes de pessoas e grupos fora das elites culturais e artísticas das metrópoles que, no entanto, criam imagens de força ou de coragem raras. Em uma época dos regimes de hipervisibilidade seletiva, nosso desejo segue sendo o de encontrar imagens de lugares, pessoas e imaginários que desconhecemos. O cinema como instrumento – janela, dispositivo – de conhecimento do mundo. De vários mundos.

Cléber Eduardo e Francis Vogner dos Reis (Mostra de Cinema de Tiradentes)
e Claire Allouche (Regards Satellites)