AS FORMAS DO TEMPO

Quando falamos de “cinema contemporâneo brasileiro”, falamos do quê? Dos filmes realizados no presente histórico? De uma periodização atual da produção cinematográfica brasileira que possuiria marcos históricos – estéticos, econômicos ou tecnológicos – delimitadores? De um conjunto de práticas criativas e modos de produção emergentes? De códigos narrativos ou regimes formais compartilhados pelo chamado “cinema de autor” no circuito europeu de festivais? Da dissolução do “dispositivo cinema” (a sala escura, o espetáculo coletivo) nas práticas de outras artes e das novas mídias?

Os vetores são variados, mas é consenso que o contemporâneo diz respeito ao tempo presente. Mas de qual tempo presente falamos? De um presente que se constitui em uma série de presentes atemporais, puros e desconectados? De um presente que é atravessado por várias outras temporalidades, cheias de passado e prenhes de futuros? Essas são algumas das perguntas, mas é preciso fazer outras. Vivemos em uma época de urgências, de rapidez, portanto, não tenhamos tanta pressa em responder. Elaborar o futuro é aderir ao presente.

A Mostra de Cinema de Tiradentes é um festival de “cinema brasileiro contemporâneo”, por isso cabe a nós nos interrogarmos sobre o estatuto do contemporâneo. Em um momento em que voltamos a fazer projeções de qual futuro é possível construirmos e de nos perguntarmos como lidaremos com os despojos que o processo anterior do país nos legou, precisamos escolher para onde vamos olhar. Defendemos aqui que é preciso, sobretudo, olhar para os filmes, para o tempo dos filmes, seja a modulação do tempo construída pelos filmes como objeto, seja o tempo no qual o filme existe.

 Tendo em vista as condições, circunstâncias e debates atuais no audiovisual brasileiro, que tempos e temporalidades atravessam essa noção de contemporâneo nas práticas cinematográficas, nas ideias, nas imagens e, sobretudo, nos filmes brasileiros contemporâneos?

O TEMPO COGNITIVO DO “CONTEMPORÂNEO”

As ideias que definem o “contemporâneo” respondem a muitas noções de temporalidade histórica e social. Em uma perspectiva mais visível e empírica, nos remetem a um tipo de construção histórica que determina uma norma geral da vida na atualidade. Hoje, por exemplo, a dilatação do tempo do trabalho e da produção coincide com a diminuição do tempo “não útil”. A demanda da eficiência e a velocidade solicitam novas formas dos sentidos e da atenção. O influxo dos acontecimentos e dos sentidos é mais rápido, fragmentário e ansioso. É cada vez mais difícil se submeter a um tempo que não nos dá uma compensação imediata, seja na forma de ganhos materiais, seja na forma de compensação subjetiva, ou seja, no sentido e no significado instantâneo que nos reconcilia com nossas consciências e sensibilidades. O estranho, ou seja, aquilo que não é familiar ou não contempla nossa perspectiva individual sobre as coisas e nossa sensibilidade particular, é cada vez menos considerado. As “narrativas” audiovisuais jogam cada vez mais com isso: com a clareza, com o desejo de linearidade e de equilíbrio. Não seria a função da arte desunir a unidade ilusória do tempo? Não seria isso que fez Luz nos Trópicos, de Paula Gaitán, Yãmiyhex – As Mulheres- Espírito, de Isael e Sueli Maxakali, Fantasmas, de André Novais Oliveira, Sete Anos em Maio, de Affonso Uchoa, Os Sonâmbulos, de Tiago Mata Machado, e República, de Grace Passô, para ficar em alguns exemplos mais radicais, entre muitos, do cinema contemporâneo brasileiro?

 O audiovisual contemporâneo, sobretudo na sua versão que visa o grande mercado (mas não só), trabalha a lógica dos nichos de identificação (que são também nichos de consumo). O espectador vai lidar com aquilo que gosta e com que “se identifica”. O “outro”, ou seja, o estranho, o desconhecido, não é vendável e certamente não é útil. “Não me interessa o que não tem a ver comigo ou com minha capacidade de desvelamento imediato do sentido.” Aí, sentido (significação) e sentidos (as funções cognitivas) se impõem como os imperativos da instantaneidade ansiosa da economia contemporânea.

As plataformas de streaming se apropriaram das urgências em diversos níveis: a urgência da produção rápida e continuada de produtos, a urgência de reconfigurar todo o mercado para atender as suas metas de hegemonia. O streaming é um emblema ideal da economia do tempo do capitalismo contemporâneo. Aventa mil possibilidades, sendo que a maior parte das ofertas de seus produtos faz a “gestão” das mesmas fórmulas, dos mesmos valores de produção e de similares valores narrativos. Ao fim de cada episódio de série ou filme, começa uma contagem regressiva que nos lançará, sem consentimento, a outro produto sugerido (ou determinado) pelo algoritmo. Uma “liberdade” de escolha mediada e vigiada.

A experiência do tempo da sala de cinema, tempo coletivo e do qual não temos a ilusão do controle do tempo de apertar o botão de avançar ou pausar, é coisa cada vez mais rara e há de ser preservada na medida do possível, porque é um modo de experimentar o tempo e fruir as imagens, distinto da avalanche cognitiva das variadas telas contemporâneas que podem ser acessadas no ônibus, no banheiro, caminhando na rua. Porém, não é questão aqui de fazer uma campanha contra a tecnologia das plataformas de streaming, que são uma realidade incontornável, mas é preciso entender suas escolhas políticas e as suas consequências cognitivas, estéticas e até mesmo trabalhistas da hegemonia dos streamings. Ou seja: é um problema das formas do tempo que vivenciamos no mundo contemporâneo e que determina também as formas de vida.

O audiovisual é o campo extenso das temporalidades descontínuas e, no caso brasileiro, sempre estamos às voltas com a ideia de um passado inconcluso e um futuro urgente. Nos últimos anos experimentamos os efeitos deletérios e complexos do “passado inconcluso e do futuro adiado” com a interrupção de políticas públicas, com a economia dominada pela concentração de capital e com precarização das atividades profissionais. Nesse contexto cabe a nós também interrogarmos sobre outras experiências do tempo mais sutis e complexas que se dão no regime estético das imagens e no forjamento de um novo espectador/espectadora.

O TEMPO HISTÓRICO DO “PRESENTISMO” E O PRESENTE

Quando testemunhamos eventos de grande dimensão como guerras, atentados, catástrofes e eleições, geralmente os testemunhamos “em tempo real”. O “tempo real” seria o presente, o agora, o imediato em áudio e imagem. A condição do “tempo real” é o evento transformado em imagem, é o espectador transformado em testemunha melancólica. Conectados 24 horas por dia, 7 dias por semana, estamos quase sempre “em tempo real” que se afigura como uma espécie de presente perpétuo.

 Tudo ganha visualidade. A intimidade performatizada, a gag memética, a informação, os segredos de alcova do poder, a morte, a paranoia coletiva ou individual. A sanha em testemunhar os eventos ao vivo, em ver o acontecimento revelado à luz do juízo público e a urgência transformada em imagem, nos transformou todos e todas não só em receptores, mas também em criadores imediatos de opiniões – e imagens – para o tempo presente. “Não há tempo a perder”, é o sentimento difuso que se impõe.

A exposição (e autoexposição) como mercadoria tomou todo o espaço social. Indústria da exposição pública, rápida, ansiosa, urgente. Confundiu-se muito rapidamente visibilidade e cidadania, viralização e ação política, engajamento em um causa e engajamento nas redes. O espantoso é a celeridade que gera volume, números, seguidores. O difícil em apreender esses fenômenos tem a ver com a velocidade com que as coisas acontecem e são instantaneamente significadas. O vasto mundo de informações e imagens que circulam em tempo recorde nos dá a tão propalada liberdade de escolha ou nos coage? Qual é a medida das urgências quando tudo parece se adiantar à nossa capacidade de olhar e ao tempo ruminante da reflexão?

 Vive-se hoje em um regime “presentista” de historicidade que define a nossa atual e particular relação com o tempo. Essa forma temporal, marcada pela estagnação do instante de um presente onipresente, onipotente, atravessa nossa percepção de mundo, nossos trabalhos, nossa relação com o tempo livre, nossa produção cultural.

Mas há de se distinguir presente de “presentismo”. Por exemplo, o ato de ver um filme pode ser uma experiência radical do presente. O presente é a condição primordial para experimentar a atualidade e a força do instante, seu mistério, sua inconstância e as possibilidades sensoriais e perceptivas do acontecimento novo. O presente é uma abertura do novo. Já o “presentismo” é um conceito condicionado e condicionante, caótico, mas que se faz na aparência da linearidade impossível, de uma narrativa que se fecha. O presentismo é o tempo da produção neoliberal, já o presente é o seu oposto porque nele há um enigma a ser experienciado. A experiência do presente, não o presentismo, libera possibilidades ricas de futuro no encontro entre o passado reminiscente e o instante.O presentismo é o tempo da produção neoliberal, já o presente é o seu oposto, porque nele há um enigma a ser experienciado. A experiência do presente não o presentismo, libera possibilidades ricas de futuro no encontro entre o passado reminiscente e o instante.

O TEMPO ESTÉTICO

Nas obras de arte, de que maneira os tempos se tornam visíveis? No seu tema? Nos seus signos? Na sua “mensagem”? No discurso ou na figura do artista? Talvez precisemos ir além desses predicados. Os tempos se tornam visíveis na arte em seu trabalho formal.

No cinema, por exemplo, há uma variedade de tempos: o tempo da duração do filme, o tempo interno das cenas, o tempo rítmico da montagem, o tempo espacializado, o tempo histórico do qual o filme é um documento, o tempo criativo de realização do filme. Há também o tempo de quem assiste ao filme com seus efeitos no corpo e na percepção, ou seja, físicos e cognitivos. No cinema o tempo é uma experiência empírica, experimentada e visível, mas também fantasmática, porque lida com a emanação daquilo que não é visível, com um rastilho de presença do passado que se faz presente, de maneira visível ou sugerida, como opacidade total ou promessa de um “mais ver”.

Olhando para os filmes, é possível compreendê-los em uma perspectiva histórica (de descompasso, de avanço, de anacronismo) e na sua dimensão estética de um tempo avesso à temporalidade imediata, emergencial, célere, breve – um tempo eficiente e que não pode parar. Isso tem aspectos políticos, perceptivos, cognitivos. A arte desune a ilusão de unidade do tempo, o que pode derivar em uma arte difícil, radical e irregular, estabelecendo uma “paisagem” nova, uma espacialização do tempo, que permite a descoberta de novas temporalidades. Talvez daí surja a complexidade, não a convenção, do que chamamos de contemporâneo. Ou seja: imagens que procuram existir e resistir aos condicionamentos que neutralizam a emergência do novo.

Francis Vogner dos Reis
Coordenador curatorial