MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIAS COLETIVAS NO CORAÇÃO DA CIDADE

Valorizar proposições formais e entendê-las como intrínsecas constituintes dos temas e conteúdos dos filmes. Reconhecer as várias brasilidades (territoriais, temporais-históricas) que atravessam a produção curta-metragista nacional contemporânea. Equilibrar nas sessões realizações ficcionais e documentais – estas últimas tão presentes entre os 1.039 filmes inscritos para a 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Antever possíveis interferências do ambiente na boa percepção dos sons e das imagens durante exibições ao ar livre. Atentar-se à potência e à importância de debates públicos com realizadores e atores de diferentes obras.

Foram e sempre são várias as preocupações e os desafios para compor a Mostra Praça. Neste ano, a proposta da curadoria, ao programar os 15 curtas-metragens das três sessões que têm lugar no popular reduto de encontros de Tiradentes, foi de vislumbrar o que pode interessar e instigar espectadores presentes nesse específico, democrático e central espaço da cidade. Além disso, em diálogo com a temática desta edição (Que Cinema É esse?), a intenção também foi deslocar possíveis expectativas do variado público com relação a percepções do que pode ser considerado um atual cinema popular brasileiro, atentando-nos, por exemplo, a obras sobre trabalhadores e a filmes de e com indígenas como peças privilegiadas desse recorte. Apostamos, então, em curtas-metragens que atraem e provocam o olhar, e que, desse modo, valorizam a força da construção de memórias individuais e coletivas possíveis a partir de sessões de cinema e da ocupação de espaços públicos pulsantes nas cidades do país.

A primeira sessão da Mostra é composta por obras que nos convidam a caminhar, com fé, por entre aquilo que (nos filmes, na vida, na cultura e na história) ainda está por se revelado e (devidamente) (re)conhecido. Em Travessia, documentário do Espírito Santo, com direção e roteiro de Karol Felício, acompanhamos, em um hospital urbano, o parto do primeiro filho da jovem indígena Ara Poty, da aldeia Rio Piraquê-Açu. A partir de cenas que mostram interações entre mulheres de diferentes gerações, percebemos contrastes culturais indígenas e ocidentais relativos às formas de nascer, viver e morrer. O curta marca a estreia de Karol Felício na direção de filmes e foi financiado pela LICC (Lei de Incentivo à Cultura Capixaba).

Em seguida, Procura-se uma Rosa, ficção do Rio de Janeiro, com direção, roteiro e produção de Julia Moraes, coloca em cena revelações de fotografias que borram as possibilidades de tornar nítidas as explicações sobre o paradeiro da recém-desaparecida Rosa (Pally Siqueira), fervorosamente procurada por seu noivo. O filme foi inspirado na dramaturgia Procura-se uma Rosa (1966), escrita por Vinicius de Moraes, que também se faz presente na trilha sonora com músicas do álbum Afro-Sambas (1966), realizado em conjunto com Baden Powell. É a estreia na direção de Julia, produtora filmes como Febre do Rato (2011) e Baixio das Bestas (2005), ambos de Cláudio Assis, e atuante como assistente de direção de diferentes artistas.

Depois, em A Fumaça e o Diamante, documentário de Brasília dirigido por Juliana Almeida, Bruno Villela e Fábio Bardella, vemos um fugaz plano sequência filmado na Aldeia Catrimani, localizada na Terra Indígena Yanomami, nos estados do Amazonas e de Roraima. Sobre as imagens impactantes devido à cor azulada e à presença de um persistente foco de fumaça, a voz de Davi Kopenawa diz, sem exatamente explicar: que Yoasi (homem branco) tem pele de “macaxeira descascada”; que fumaça é canibal; que Yanomami é como diamante; que garimpo é consequência, não origem; que Xawara (“fumaça do ouro”) traz destruição; que a Assembleia Hutukara da Associação Yanomami é uma arma; que ele não quer morrer na cidade, mas sim onde nasceu. Conhecido pela autoria, junto a Bruce Albert, do célebre A Queda do Céu (2010), Kopenawa foi filmado para o filme em 2016, numa entrevista sobre a ciência e a arte dos Xapiri (espíritos e guardiões invisíveis das florestas) para a série documental Índio Presente. O curta foi exibido em alguns dos principais festivais nacionais de cinema e em mostras e festivais de países como Índia, Nigéria, Costa Rica, México, Portugal, Alemanha, Canadá e Estados Unidos.

Já em Canto das Areias, documentário do Espírito Santo dirigido por Maíra Tristão, realizadora com produção significativa de curtas-metragens, as imagens aproximam o invisível e o visível da fé materializada nas figuras de santos católicos ao vaivém, à aparição e à desaparição de dunas que, em 1945, soterraram a vila de Itaúnas (ES), que tem São Benedito como padroeiro. Memória e devoção se cruzam em tempo dilatado no curta, que já foi premiado nacionalmente.

O esforço para a reconstituição do passado e a consciência sobre gravidades apresentadas desde os ditos de Kopenawa ressurgem no último filme da sessão. Cavaram uma Cova no meu Coração, curta-metragem de Alagoas, com direção e roteiro de Ulisses Arthur, hibridiza ficção e documentário ao colocar em cena jovens do bairro de Bebedouro, em Maceió, atuando em meio a escombros reais. A destruição foi ocasionada pelo afundamento do solo na região, devido ao rompimento, em dezembro de 2023, de uma mina de sal-gema explorada pela empresa petroquímica Braskem. A lembrança do desastre pouco noticiado e a fabulação como enfrentamento político-social são acentuadas pela dramaticidade do preto e branco das imagens do curta premiado pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema).

A segunda sessão da Mostra articula filmes que refletem sobre diferentes tempos e formas de trabalho e consumo, reconhecendo a importância de resgates culturais e festivos como regozijos em meio ao cotidiano. O filme de abertura, Yby Katu (“terra fértil”), produção do Rio Grande do Norte, hibridiza não apenas aspectos ficcionais e documentais, como também diferentes autorias e realidades. Nele, acompanhamos o cotidiano de três personagens de gerações distintas, que vivem entre a cultura agrícola indígena Potyguara do Katu e o centro urbano da Grande Natal. A direção coletiva é de Kaylany Cordeiro, Jessé Carlos, Ladivan Soares, Geyson Fernandes e Rodrigo Sena. O grupo realizou o filme ao participar do Território Katu Digital, um projeto de formação audiovisual direcionado a potiguaras da Comunidade Indígena do Katu, localizada na cidade de Canguaretama.

A atenção às conexões intergeracionais se mantém presente em Phoenix Club, ficção de Alagoas dirigida por Gabriela Araújo e exemplar das produções contemporâneas feitas com recursos tanto da Lei Aldir Blanc quanto da Lei Paulo Gustavo. O curta retoma a memória do tradicional e já inexistente clube carnavalesco alagoano, ao misturar atmosferas alegres e melancólicas que evidenciam o estado de espírito do protagonista Valeriano (Almir Guilhermino), um senhor aposentado que, entre momentos de vazio, vive encontros no nostálgico espaço de dança e diversão que frequentou durante décadas.

Depois, a observação do cotidiano, agora urbano, ressurge e em Goiânia: Notas Pendulares sobre a Metrópole, documentário de Goiás dirigido por O. Juliano Gomez, que compila relatos (em off) e imagens de trabalhadoras e trabalhadores da Grande Goiânia. Incitando uma reflexão sobre as estreitas relações entre cidade e trabalho, o curta acaba por remeter a filmes de caráter observacional que marcaram o início do cinema, como A Saída dos Operários da Fábrica (Irmãos Lumière, 1985) e Um Homem com uma Câmera (Dziga Vertov, 1929).

Em seguida, o registro direto de imagens sobre a realidade urbana é deslocado pela poesia das animações em Reciclos, produção do Rio de Janeiro, dirigida, roteirizada e animada por Diego Guerra. Tendo o papelão como matéria-prima para a materialização das personagens, o curta-metragem, que estreia nesta edição da Mostra de Tiradentes, acompanha o cíclico cotidiano de catadores de latinhas de alumínio e questiona a exploração e exaustão que esse tipo de atividade também carrega.

Finalmente, o mencionado e merecido regozijo em meio aos trabalhos cotidianos explode na tela no último filme da sessão. Em Fluxo – O Filme, outra obra que hibridiza ficção e documentário, imergimos, junto ao desiludido protagonista Fábio (François Augusto), na experiência imagética e sonora dos bailes funk das ruas de Cidade Tiradentes, bairro do extremo leste da cidade de São Paulo, local de origem do curta e de seu diretor, Filipe Barbosa. A produção é resultado de consultoria de roteiros financiada pela empresa pública SPCine, e homenageia os nove jovens mortos em ação policial ocorrida durante um baile funk de rua no bairro de Paraisópolis, também na capital paulista, em 2019.

A terceira e última sessão da Mostra propõe uma experiência cinematográfica aguçada por proeminentes experimentações formais mobilizadas para a valorização de biografias de diferentes artistas. O primeiro curta exibido, Mukunã – Aprendiz de Pajé, realizado no Rio Grande do Norte, com direção e fotografia de Rodrigo Sena, acompanha de perto o personagem-título, que se prepara para se tornar pajé da Aldeia Potiguara Katu, a mesma mostrada no curta Yby Katu, presente na segunda sessão da Mostra Praça — o diretor Rodrigo, inclusive, tem relação com as formações oferecidas pelo projeto Território Katu Digital. O curta denuncia o desmatamento na região e articula imagens e sonoridades que dão profundidade sensorial para aquilo que o protagonista e outras personagens fazem e falam nas cenas.

Em seguida, Junho de 2002, filme experimental de Minas Gerais dirigido, em contexto formativo, por Tainá Lima, articula fotografias, cartelas com escritos garrafais, imagens de vídeo e cenas performáticas para tecer reflexões sobre o cinema e a biografia da própria autora, cineasta negra jovem da cidade de Contagem (MG). A relação entre cinema, autoria cinematográfica e biografia de realizadores se mantém presente no filme Fulano de Tal, produção de São Paulo dirigida por Vane Ferreira, Reinê Pires Muzzi e André Pagani Barata. O curta se constrói como filme ensaio sobre Otoniel Santos Pereira, cineasta e jornalista que trabalhou com grandes nomes do cinema da Boca do Llixo, como Andrea Tonacci e Rogério Sganzerla, cujas obras são acionadas em meio à montagem.

Outra biografia de artista negra é exibida na telona no curta-metragem de proposta experimental Stella do Patrocínio e a Gênese da Poesia. A produção do Rio de Janeiro dirigida por Milena Manfredini se debruça sobre a vida, a obra e o reconhecimento de Stella do Patrocínio, poetiza que viveu décadas internada na Colônia Juliano Moreira, antigo hospital psiquiátrico de Jacarepaguá (mesma instituição onde Arthur Bispo do Rosário foi confinado), e que teve seu potencial artístico tornado público por meio do livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (2001), organizado pela filósofa Viviane Mosé.

O último filme da sessão encerra a Mostra Praça com uma perambulação fabulatória guiada por uma jovem cubana de 12 anos de idade. Em Daimara y el Baile Zombie, produção realizada entre São Paulo e Havana, com direção de Natália Keiko e Tom Hamburger, a personagem-título, Daimara, percorre ruas e escombros de uma cidade do interior de Cuba, como forma de reinterpretar percepções sobre os desaparecimentos que acontecem na região como parte da crise migratória do país. Uma arqueologia inventiva; uma brincadeira séria de rearticulação biográfica do espaço; uma construção de novas memórias sobre espaços de encontros e de desencontros nas cidades latino-americanas.

Camila Vieira
Leonardo Amaral
Lorenna Rocha
Mariana Queen Nwabasili
Rubens Fabricio Anzolin

Curadores