IMAGENS PARA REIMAGINAR O CINEMA

Filmes que buscam seu próprio tempo. Filmes que brincam de fazer cinema. Filmes que duvidam de si mesmos. Filmes que retratam como quem dança. Filmes que acreditam na imaginação diante da câmera. Filmes que abusam sem medo dos artifícios cinematográficos. Filmes que balançam nossas emoções. Filmes que desejam. Filmes que historiografam. Filmes que rememoram. Filmes que também querem fazer esquecer. Filmes que trabalham. Filmes que experimentam.

A Mostra Panorama da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes busca a fricção entre as imagens como força cinética para o agrupamento e o desenho de seus programas. As cinco sessões reúnem filmes de todas as regiões do país que, apesar das diferenças de realização, de proposição estética e temática, aparecem como possibilidade de reimaginar o cinema, desde suas operações mais convencionais, como na desobediência de figurar os cenários mais imprevisíveis.

A seleção também reverbera um cenário do cinema brasileiro que se reorienta geograficamente, operação que ganha volume e significância com os fomentos à cultura da Lei Aldir Blanc e da Lei Paulo Gustavo. Não se trata de comemorar falsas simetrias, mas de lançar luz a uma produção, mesmo que tímida, em cenários brasileiros que ainda pouco aparecem em nossas telas. Essas cinematografias emergentes aparecem entre os filmes selecionados, com as marcas de seus territórios e de seus modos de fazer cinema. Há também curtas-metragens assinados por diretores e diretoras mais conhecidos na paisagem do cinema brasileiro, mas que não deixam de, direta ou indiretamente, reinventar o próprio ofício.

Deslocamentos e transfigurações conectam os filmes do programa A Terra, o Carvão, o Movimento, primeira sessão da Mostra Panorama. Em Entre Aulas, de Marizele Garcia (Bagé, RS), duas garotas encontram um amigo após fugirem da escola e passam a manhã vagando pela cidade. Enquanto brincam, cantam e exploram o espaço, o trânsito se revela tão importante quanto vivenciar o tempo. Já Chibo, de Gabriela Poester e Henrique Lahude (Tiradentes do Sul, RS), vai até as margens do Rio Uruguai, onde a fronteira entre Brasil e Argentina faz transparecer mais do que trânsitos comerciais, mas a possibilidade de transformação de uma juventude. Fuga, de Viníciux da Silva e Raphael Medeiros (Rio de Janeiro), enuncia a impossibilidade de ser estático. Corpo, matéria, artifício: tudo opera na mudança. Confluências, de Dácia Ibiapina e Antônio Bispo dos Santos (Brasília), nos leva até São João do Piauí, no Quilombo Saco-Curtume. No chão de terra batido, a intimidade enuncia formas de ver o mundo, a cachaça desenha presenças brincantes e a música acentua o gesto de biografar um ser coletivo.

No segundo programa, Câmera, Ferramenta do Mundo, o cinema revira a ordem das sensações, das paisagens corriqueiras, faz do banal algo triunfante, torna serena a morte, sampleia as imagens de trabalho, remonta as figurações do desejo. Em Desvios Diários: Domingo, de Bruno Risas (SP), uma mulher vagueia por Diadema (SP). O retrato sonoro dá textura a uma região de influências múltiplas, que se territorializa por canções, poesia e inspirações cinematográficas. Safo, a Doce-Amarga, de Larissa Muniz (Belo Horizonte), embaralha os sentidos dos filmes dirigidos por mulheres brancas e negras, dando destaque não apenas ao modo como olham, replicam e investem em certas imagens, mas à fricção entre elas, deixando escapar excitação e libido. Em A Última Valsa, de Fábio Rogério e Jean-Claude Bernardet (São Carlos e São Paulo, SP), a sala de cinema vai até a casa e o filme, a cada vez que se autoenuncia, nos desafia a reelaborar o que entendemos como violência. A pulsão de morte chega enigmática e cheia de vida. Candeias, um Ser do seu Tempo, de Well Darwin (São Bernardo do Campo, SP), sobrepõe sequências e cria ruídos a partir da filmografia de Ozualdo Candeias. Uma entrevista, registrada no final de 1997, atravessa os títulos e reimagina o cinema brasileiro. Meu Amigo Pedro Mixtape, de Lincoln Péricles (São Paulo), produz um remix de materiais audiovisuais que nos mobiliza a repensar sobre a memória, a preservação e nossas formas de contar histórias.

Em Estranho Jogo do Desejo, terceiro programa da Panorama, o erotismo e o prazer ganham contornos multifacetados, nos atraindo para distintas zonas de experimentação. Os cinco filmes da sessão são arranjados de modo a confundir os códigos expressos, criando um amálgama em plena diferença. O Faz-Tudo, de Fábio Leal (Recife e São Paulo), põe em crise o estatuto da imagem e reacende o debate entre desejo e trabalho. E seu Corpo É Belo, de Yuri Costa (Rio de Janeiro), nos ambienta num baile da década de 1970, em que homens negros metamorfoseiam suas fantasias, assim como o DJ muda a faixa de música. Em Três, de Lila Foster (Brasília), várias triangulações se delineiam, reposicionando o corpo que trabalha como um corpo desejante. Festa Infinita, de Ander Beça (Recife), faz do palco um campo de imaginação e estrelato. Sobreviver, então, torna-se sinônimo de criar, e o desejo de viver coletivamente impõe maneiras inventivas de expressar a vontade de permanecer juntos. Dois Nilos, de Samuel Lobo e Rodrigo de Janeiro (Rio de Janeiro), encerra a sessão com a memória e energia do cineasta Afrânio Vital. Ainda pouco conhecido, o diretor negro revisita sua relação com o cinema brasileiro. Ao lado do ator Wilson Rabelo, ele destaca o poder do erótico e da literatura em sua filmografia.

Já no quarto programa, Acender as Velas, Habitar as Sombras, a investigação através das imagens elabora percepções entre luz e sombra, vestígios e monumentos, revelar e ocultar, entendimento e imaginação. Em Pupá, de Osani (Acari, RN), uma passadora de jogo do bicho tem sua vida documentada. Entre o piseiro, a reza e a produção de um lambedor artesanal, as cenas do interior tornam oportunas a elaboração de perguntas sobre as identidades a partir de um Brasil ainda pouco mapeado. Vermelho de Bolinhas, de Joedson Kelvin e Renata Fortes (Santana do Cariri, CE), confecciona um exercício historiográfico e imagético. Na tentativa de retratar a história de Benigna, o filme se depara com os desafios de se aproximar de uma santa católica sem imagem. A escassez de registros familiares também impõe adversidades ao fazer cinematográfico de Pedro de Alencar (Rio de Janeiro e Niterói, RJ), em Sebastiana. Imagens de arquivo e matérias de jornais compõem materiais vivos de uma jornada investigativa que busca alcançar o que está declaradamente fora de alcance. Em Aparição, de Camila Freitas (BA), um filme torna-se oferenda. O visível dá as mãos ao invisível e dançam juntos. Lagoa Armênia, de Leonardo da Rosa (Taquari, RS), usa do negativo da imagem para inverter uma história de violência. A conversa entre os parceiros da cidade manifesta um problema de ordem coletiva.

Na última sessão da Mostra Panorama, Entre a Morte e a Vida, há uma frontalidade poética em encarar os desdobramentos do mundo, seus limites e seus desencantos. Em Ri, Bola, de Diego Bauer (Manaus), a tentativa de recuperar o humor de um amigo nos direciona a um retrato cru de um jovem que perdeu o brilho do cotidiano. Zé Tonho, de Lucas Chagas (Diadema, SP), acompanha a jornada de seu personagem, com desafios que o levam a encarar a solidão. Em Quando Parir É um Feitiço, de Marina Fortunato (Vitória), a performer movimenta o próprio corpo em direção a um episódio traumático. Evocam-se forças espirituais e manipulam-se ervas, remexendo nas feridas de modo a instaurar e reencenar a cura. Lia Letícia, em Mar de Dentro (Fernando de Noronha, PE), elabora um mapa sob o passado com os próprios passos. Linhas vermelhas delimitam o percurso e tornam vibrantes a memória de Sérgio Lino da Silva, seu avô. Em Veredas, de Igor Rossato (Assis, Pedrinhas Paulista e Florínea, SP), a dureza do trabalho contrasta com o sonho do reencontro. Se a doença invade como interrupção do sopro de vida, a vontade de chegar mais perto lança um olhar mais esperançoso à realidade rodeada de aspereza.

Camila Vieira
Leonardo Amaral
Lorenna Rocha
Mariana Queen Nwabasili
Rubens Fabricio Anzolin

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